Quando a Vida se Torna um Quadro Sem Cor

— Miguel, outra vez com essas tintas espalhadas pela sala? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, carregada de exasperação. — Já te disse que isto não é vida! Pinta lá os teus quadros, mas arranja um trabalho a sério!

A cada palavra dela, sentia o peso do mundo a esmagar-me o peito. O cheiro a óleo e terebintina era o meu refúgio, mas ali, naquela casa antiga de Vila Real, parecia ser apenas mais uma razão para dececionar quem me criou. Olhei para o quadro inacabado à minha frente: uma paisagem sem cor, árvores despidas, céu opaco. Era assim que eu via o mundo ultimamente.

— Mãe, eu só preciso de mais tempo… — tentei explicar, mas ela já tinha virado costas, resmungando sobre contas por pagar e vizinhos que falavam demais.

O meu pai, sentado à mesa da cozinha, nem levantou os olhos do jornal. — O teu primo João já está a trabalhar na Câmara. E tu? Vais ficar aí a brincar com pincéis até quando?

A vergonha queimava-me as faces. Não era só a família; toda a vila parecia conspirar contra mim. No café do senhor Américo, os velhos olhavam-me de lado quando entrava com as mãos manchadas de tinta. — Lá vai o artista — murmuravam, entre goles de bagaço.

À noite, sozinho no quarto gelado, perguntava-me se valia a pena continuar. As cores tinham fugido dos meus quadros e da minha alma. Pintava por hábito, não por paixão. Os sonhos de exposições em Lisboa ou no Porto pareciam tão distantes como o verão em pleno janeiro transmontano.

Uma noite, depois de mais uma discussão acesa com os meus pais — desta vez sobre a conta da luz — saí porta fora sem destino. O frio cortava-me a pele, mas precisava de respirar longe daquela pressão constante. Sentei-me no banco do jardim municipal, onde tantas vezes desenhara crianças a brincar ou idosos a jogar às cartas. Agora estava vazio, como eu.

— Estás bem? — A voz suave tirou-me dos meus pensamentos. Era a Ana, colega do liceu e agora professora primária na vila.

— Estou… ou pelo menos tento estar — respondi, forçando um sorriso.

Ela sentou-se ao meu lado, puxando o cachecol até ao nariz. — Sempre gostei dos teus quadros. Lembras-te daquele que fizeste da ponte romana? Ainda está pendurado na escola.

Senti um calor estranho no peito. Alguém reparava em mim? — Sinto que perdi as cores… tudo me parece igual, sem vida.

Ana ficou em silêncio por um momento. — Às vezes também sinto isso com os miúdos. Mas sabes? Eles veem o mundo de outra forma. Talvez devesses pintar como se fosses criança outra vez.

Aquela noite ficou gravada em mim. Voltei para casa com uma ideia: pintar sem pensar em agradar aos outros, sem medo do julgamento. No dia seguinte, fechei-me no quarto e deixei as mãos correrem livres sobre a tela. Usei cores berrantes, formas estranhas, memórias da infância misturadas com sonhos nunca vividos.

Os dias passaram e os quadros começaram a empilhar-se. Os meus pais continuavam a reclamar — agora pelo cheiro intenso das tintas — mas algo em mim tinha mudado. Sentia-me vivo outra vez.

Um sábado de manhã, Ana apareceu à porta com um convite inesperado. — Vamos fazer uma exposição na escola sobre sonhos e futuro. Queres participar?

O medo apertou-me o estômago. Mostrar os meus quadros à vila? Seria motivo de troça ou orgulho?

— Não sei se estou pronto…

Ela sorriu: — Ninguém está. Mas se não arriscarmos nunca vamos saber.

Aceitei. Passei noites em claro a escolher as telas certas, a retocar detalhes, a duvidar de tudo. No dia da exposição, as mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair um quadro.

A escola encheu-se de crianças curiosas e adultos desconfiados. O senhor Américo veio com o neto pela mão; até o meu pai apareceu, contrariado mas presente.

— Este és tu? — perguntou uma menina loira apontando para um quadro onde um rapaz corria num campo de girassóis gigantes.

— Sou… ou pelo menos era assim que me via quando era pequeno.

Ela sorriu: — Eu também quero ser grande e correr assim.

Os adultos começaram a comentar baixinho. Alguns elogiavam as cores vivas; outros franziram o sobrolho perante as formas pouco convencionais. Mas ninguém ficou indiferente.

No final do dia, Ana abraçou-me: — Viste? Trouxeste cor à vila.

O meu pai aproximou-se devagar. Olhou para mim e depois para os quadros. — Se calhar… tens mesmo jeito para isto.

As palavras dele foram como sol depois de semanas de chuva.

A partir desse dia, algo mudou em casa e na vila. Os vizinhos começaram a pedir retratos ou paisagens para pendurar na sala; as crianças queriam aprender a pintar comigo; até a minha mãe começou a limpar o pó aos meus pincéis com menos resmungo.

Mas acima de tudo, recuperei as cores dentro de mim. Percebi que não precisava fugir para Lisboa ou Paris para ser artista; bastava pintar com verdade e coragem onde quer que estivesse.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos de nós vivem anos presos num quadro sem cor por medo do olhar dos outros? E se arriscássemos todos pintar a nossa própria vida sem pedir licença?