Quando a Esperança se Apaga: O Diário de Inês

— Não aguento mais, mãe. Eu não aguento mais! — gritei ao telefone, a voz embargada, enquanto as lágrimas me queimavam o rosto. Do outro lado, a minha mãe tentava acalmar-me, mas as palavras dela soavam distantes, como se viessem de outro mundo. O meu corpo tremia, e o quarto parecia encolher à minha volta.

Era uma noite fria de novembro em Lisboa. O vento batia nas janelas do nosso pequeno apartamento em Chelas, e os meus filhos, o Tiago e a Matilde, dormiam no quarto ao lado, alheios ao caos que me consumia. O relógio marcava duas da manhã, mas o sono era um luxo que eu já não conhecia há semanas.

Tudo começou há seis meses. O Rui, meu marido há dez anos, chegou tarde a casa — mais uma vez. O cheiro a perfume barato denunciou-o antes mesmo de ele abrir a boca. Tentei ignorar, tentei acreditar que era só cansaço do trabalho no restaurante. Mas naquela noite, quando ele largou o telemóvel no sofá, vi uma mensagem: “Amo-te. Vem logo.” O nome era de uma colega dele, a Sónia. Senti o chão fugir-me dos pés.

— Rui, quem é a Sónia? — perguntei, tentando manter a voz firme.

Ele olhou para mim, olhos cansados, e encolheu os ombros.

— Não é nada do que estás a pensar, Inês. — Mas eu já sabia. O olhar dele dizia tudo.

A partir desse dia, tudo desmoronou. O Rui começou a passar mais tempo fora de casa. As contas começaram a acumular-se: renda atrasada, luz por pagar, o supermercado cada vez mais caro. No trabalho — sou auxiliar numa escola primária — cortaram-me horas por causa dos cortes do Ministério da Educação. O dinheiro mal dava para o básico.

A minha mãe dizia-me para ser forte pelos miúdos. Mas como ser forte quando até respirar custa? Como sorrir quando tudo dói?

Numa manhã de dezembro, acordei com o som do telefone. Era o senhorio.

— Dona Inês, desculpe incomodar tão cedo, mas preciso que regularize a renda até ao fim do mês ou terei de tomar medidas.

Desliguei sem saber o que responder. Olhei para os meus filhos: Tiago com oito anos, Matilde com cinco. Eles mereciam mais do que isto. Mereciam uma mãe inteira, não este farrapo humano.

Nesse dia, fui buscar o Rui ao restaurante depois do turno dele. Esperei à porta durante meia hora até vê-lo sair com a Sónia. Riam-se juntos, cúmplices. Quando me viu, ficou pálido.

— Inês… — começou ele.

— Acabou, Rui. Não volto a ser invisível na minha própria casa.

Ele tentou justificar-se, mas eu já não ouvia. Só queria fugir dali, desaparecer.

As semanas seguintes foram um pesadelo. Rui saiu de casa e deixou-me sozinha com tudo: as contas, as crianças, as perguntas difíceis.

— A mãe está triste porque o pai foi embora? — perguntou-me o Tiago uma noite.

— Não, filho. A mãe está só cansada — menti.

No Natal, não houve presentes. Fiz um bolo simples e tentei sorrir enquanto os miúdos desembrulhavam desenhos feitos por eles próprios. Senti-me miserável.

Em janeiro, recebi uma carta do tribunal: processo de divórcio e regulação das responsabilidades parentais. O Rui queria guarda partilhada — mas eu sabia que era só para não pagar pensão.

Comecei a perder peso. Dormia mal. Às vezes pensava em desaparecer — só fechar os olhos e deixar de sentir tudo isto.

Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me na varanda com um cobertor velho e olhei para as luzes da cidade. Perguntei-me como é que tinha chegado aqui. Lembrei-me da Inês de vinte anos atrás: cheia de sonhos, apaixonada pelo Rui, certa de que juntos podíamos tudo.

A minha mãe insistia para eu ir à igreja com ela aos domingos.

— Pelo menos rezas um bocadinho e vês gente — dizia ela.

Fui uma vez só para lhe agradar. Sentei-me no fundo e chorei em silêncio durante toda a missa.

No trabalho, comecei a faltar por doença. A diretora chamou-me ao gabinete.

— Inês, sei que estás a passar um mau bocado… Mas precisamos de ti aqui presente. Se precisares de ajuda psicológica, posso encaminhar-te para os serviços da escola.

Senti vergonha. Eu era sempre aquela que ajudava os outros — agora era eu quem precisava de ajuda?

Uma tarde, ao buscar a Matilde ao ATL, encontrei a professora dela à porta.

— Dona Inês, posso falar consigo?

O coração apertou-se-me no peito.

— A Matilde anda muito calada ultimamente… Desenhou uma família sem pai hoje na aula. Está tudo bem em casa?

Sorri e disse que sim — mas por dentro desmoronei ainda mais.

Foi nessa noite que cheguei ao limite. Deitei-me na cama e fechei os olhos com força. Pensei em como seria fácil simplesmente não acordar no dia seguinte. Mas depois ouvi os passos pequeninos da Matilde no corredor.

— Mãe? Posso dormir contigo?

Abri espaço na cama e abracei-a com força. Senti o calor dela junto ao meu peito e chorei baixinho para não a acordar.

No dia seguinte marquei consulta na médica de família. Falei-lhe de tudo: da traição do Rui, das dívidas, do cansaço infinito.

Ela ouviu-me com atenção e sugeriu acompanhamento psicológico e medicação para a ansiedade.

Comecei terapia duas semanas depois. No início achei que era inútil — mas aos poucos fui percebendo que precisava mesmo de falar sobre tudo aquilo que me sufocava há meses.

Aos poucos fui recuperando alguma força. Aceitei ajuda da minha mãe para ficar com os miúdos quando precisava de descansar ou ir às consultas.

No trabalho voltei a sorrir — ainda que timidamente — às crianças da escola.

O Rui continuava ausente; aparecia só quando lhe dava jeito ou quando queria discutir dinheiro.

Uma noite ligou-me furioso:

— Achas justo eu pagar tudo sozinho? Também tens responsabilidades!

Respirei fundo antes de responder:

— Os teus filhos precisam de ti mais do que do teu dinheiro, Rui. Mas se não queres ajudar nem com uma coisa nem com outra… então pelo menos não compliques ainda mais.

Desliguei antes que ele pudesse responder.

Os meses passaram devagarinho. Fui aprendendo a viver sozinha com os meus filhos e as minhas dores. Aprendi a pedir ajuda sem vergonha; aprendi que ser mãe solteira em Portugal é uma luta diária contra preconceitos e dificuldades reais.

Um dia recebi uma proposta inesperada: uma colega da escola ia emigrar para França e perguntou se eu queria ficar com as horas dela. Aceitei sem hesitar — finalmente podia respirar um pouco melhor financeiramente.

No verão levei os miúdos à praia da Costa da Caparica pela primeira vez desde o divórcio. Vi-os correr na areia e ri-me genuinamente pela primeira vez em muito tempo.

Ainda tenho dias maus — muitos até. Ainda choro às vezes quando ninguém vê; ainda me sinto sozinha nas noites longas em Chelas. Mas aprendi que mesmo quando tudo parece perdido há sempre uma réstia de esperança algures dentro de nós.

Agora olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem histórias como a minha todos os dias em Portugal? Quantas se sentem invisíveis nas suas próprias casas? E vocês — já sentiram que não havia saída? Como encontraram forças para continuar?