Pai, quem sou eu para ti?

— Pai, quem sou eu para ti?

A pergunta da Sofia ecoou na sala como um trovão num dia abafado de verão. Ela tinha apenas cinco anos, mas os olhos castanhos já carregavam uma tristeza que eu não sabia explicar. Sentei-me no sofá, com as mãos trémulas, e olhei para ela, tão pequena e ao mesmo tempo tão cheia de mundo.

A Ana estava na cozinha, a tentar disfarçar as lágrimas enquanto cortava cebolas. Ou talvez não fossem só as cebolas. Nos últimos meses, tudo parecia demasiado frágil: o nosso casamento, o dinheiro, até a casa que herdámos dos meus pais em Almada. Nunca planeámos ser pais tão cedo. A Sofia foi uma surpresa — uma daquelas que te obriga a crescer à força, mesmo quando só querias continuar a ser jovem.

— És tudo para mim, filha — respondi, mas a minha voz saiu mais baixa do que queria. Ela não pareceu convencida. — Às vezes não parece — murmurou.

O silêncio caiu entre nós. O relógio da parede marcava sete e meia. O cheiro do jantar misturava-se com o cheiro a humidade das paredes antigas. Lembrei-me de quando eu próprio era criança ali, a ouvir os meus pais discutirem baixinho na cozinha. Agora era eu o adulto, mas sentia-me tão perdido como antes.

A Ana entrou na sala, limpando as mãos ao avental. — O jantar está pronto — disse, sem me olhar nos olhos. Sofia correu para ela, agarrando-se-lhe às pernas. Eu fiquei sentado, a pensar em tudo o que tinha corrido mal.

Trabalhava como técnico de informática numa loja do centro de Lisboa. O ordenado mal dava para as contas. A Ana tinha deixado o emprego de professora primária quando engravidou e nunca mais conseguiu voltar ao mercado de trabalho. A minha mãe dizia que era por falta de vontade. Eu sabia que era mais do que isso: era medo, era cansaço, era sentir-se invisível.

Ao jantar, a tensão era palpável. Sofia brincava com o arroz no prato. — Amanhã posso ir ao parque com a Mariana? — perguntou ela.

A Ana olhou para mim antes de responder. — Não sei se vai dar, filha. O pai tem de trabalhar e eu tenho de ir ao centro de emprego.

— Nunca posso fazer nada — resmungou Sofia.

— Não fales assim à tua mãe — disse eu, talvez com mais dureza do que devia.

Ela baixou a cabeça e eu senti uma pontada no peito. Lembrei-me do meu pai a gritar comigo por coisas pequenas. Jurei que nunca seria assim. Mas ali estava eu, a repetir padrões antigos.

Depois do jantar, fui fumar um cigarro à varanda. O bairro estava silencioso, só se ouvia o som distante dos elétricos e o ladrar de um cão. A Ana veio ter comigo.

— Temos de falar — disse ela.

Assenti, sem coragem para enfrentar o que vinha aí.

— Não sei quanto mais consigo aguentar isto — confessou ela, com os olhos vermelhos. — Sinto-me sozinha aqui dentro. Sinto que já não somos uma família.

As palavras dela bateram-me como um murro no estômago. Quis abraçá-la, dizer-lhe que tudo ia ficar bem, mas não consegui mexer-me.

— Eu também me sinto perdido — admiti. — Mas não podemos desistir agora.

Ela abanou a cabeça. — Não sei se temos escolha.

Nessa noite dormimos costas voltadas. Ouvi-a chorar baixinho e odiei-me por não saber como ajudar.

Os dias seguintes foram iguais: trabalho, filas no centro de emprego, discussões sobre dinheiro, sobre quem ia buscar a Sofia à escola, sobre quem tinha culpa pelo quê. A casa parecia encolher-se à nossa volta.

Uma tarde, recebi uma chamada da escola: Sofia tinha tido um ataque de ansiedade. Fui buscá-la a correr. Quando cheguei, encontrei-a sentada num banco do recreio, abraçada à professora Mariana.

— O que aconteceu? — perguntei, ajoelhando-me ao lado dela.

Sofia olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas. — Pensei que não vinhas…

A professora pousou-lhe a mão no ombro. — Ela tem estado muito ansiosa ultimamente. Talvez fosse bom falar com alguém.

Levei-a para casa em silêncio. No caminho, ela perguntou:

— Vais-te embora como o avô se foi embora da avó?

O coração apertou-se-me no peito. O meu pai tinha abandonado a minha mãe quando eu tinha dez anos. Nunca pensei que esse fantasma viesse assombrar a minha filha.

— Nunca te vou deixar, Sofia — prometi-lhe, mas nem eu acreditava nas minhas palavras.

Nessa noite sentei-me com a Ana à mesa da cozinha depois de Sofia adormecer.

— Isto não pode continuar assim — disse-lhe. — A Sofia está a sofrer por nossa causa.

Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos. — E tu achas que eu não estou?

Ficámos ali sentados em silêncio durante muito tempo. Depois ela falou:

— Talvez devêssemos procurar ajuda… terapia de casal ou assim.

Assenti. Era difícil admitir que precisávamos de ajuda, mas era ainda mais difícil ver a nossa filha sofrer.

Começámos a ir às sessões todas as semanas num centro comunitário ali perto. No início foi estranho: falar dos nossos medos e mágoas à frente de uma estranha parecia impossível. Mas aos poucos fomos abrindo as feridas antigas: o medo da Ana de não ser suficiente; o meu ressentimento por ter deixado os meus sonhos para trás; as discussões sobre dinheiro; as noites sem dormir; os silêncios pesados.

A terapeuta ensinou-nos a ouvir sem julgar, a falar sem gritar, a pedir desculpa sem vergonha.

Sofia também começou a ir a sessões com uma psicóloga infantil. Aos poucos foi voltando a sorrir, a brincar no parque com as amigas, a pedir-me para lhe contar histórias antes de dormir.

Um dia, ao fim de muitos meses difíceis, sentei-me com ela no sofá e perguntei-lhe:

— Ainda queres saber quem és para mim?

Ela sorriu e aninhou-se no meu colo.

— És o meu mundo inteiro — disse-lhe, desta vez sem hesitar.

Ela abraçou-me com força e senti finalmente que talvez estivéssemos no caminho certo.

A Ana entrou na sala e sentou-se ao nosso lado. Pela primeira vez em muito tempo senti paz naquela casa antiga cheia de memórias boas e más.

Ainda temos dias maus — claro que sim. Ainda discutimos por coisas pequenas; ainda há contas por pagar; ainda há medos e inseguranças. Mas agora sabemos pedir ajuda quando precisamos; sabemos ouvir-nos uns aos outros; sabemos que somos uma família, mesmo quando tudo parece desabar à nossa volta.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas neste ciclo de silêncio e dor? Quantos pais têm medo de admitir que não sabem ser pais? E se tivéssemos coragem de pedir ajuda mais cedo? Talvez seja esse o verdadeiro ato de amor: reconhecer que precisamos uns dos outros para sobreviver.