Os Sacrifícios Invisíveis: A História de Mariana
— Mariana, não podes sair agora! — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu já tinha uma perna fora da porta. O cheiro do arroz de pato misturava-se com o perfume do detergente barato, e eu sentia o peso da responsabilidade a esmagar-me o peito.
— Mas mãe, prometi à Inês que ia ao ensaio… — tentei argumentar, mas a voz dela cortou-me como uma faca.
— A tua irmã está doente! Preciso de ti aqui. Não percebes? — Os olhos dela brilhavam de cansaço e frustração. O meu pai, sentado à mesa, fingia ler o jornal, mas eu sabia que ouvia cada palavra.
Engoli em seco. Mais uma vez, os meus planos ficavam para depois. Desde pequena que era assim: se alguém precisava de mim, eu estava lá. A Inês tinha asma, o meu irmão mais novo precisava de ajuda com os trabalhos de casa, o meu pai nunca levantava um dedo. E eu? Eu era a filha responsável, a que não dava trabalho, a que sabia calar os próprios sonhos para manter a paz.
Lembro-me de uma noite em particular. Tinha dezasseis anos e o meu coração batia forte por um rapaz da escola, o Rui. Ele convidou-me para ir ao cinema. Fiquei tão nervosa que quase não dormi na véspera. Mas nessa tarde, a minha mãe chegou a casa com os olhos vermelhos.
— O teu pai perdeu o emprego — sussurrou ela. — Preciso que cuides dos teus irmãos enquanto vou falar com ele.
O convite do Rui ficou esquecido na secretária. Ele nunca mais me falou.
Os anos passaram e fui aprendendo a engolir as lágrimas. Entrei na faculdade de Letras em Lisboa, mas todos os fins de semana apanhava o autocarro para casa, em Santarém, para ajudar. Os meus colegas saíam à noite, viajavam, namoravam. Eu lavava roupa, cozinhava e estudava à luz do candeeiro do quarto partilhado com a Inês.
— Mariana, porque é que nunca vens connosco ao Bairro Alto? — perguntava a Joana, minha colega de curso.
— Tenho coisas para fazer em casa — respondia sempre. Era mais fácil assim do que explicar o nó na garganta que sentia sempre que pensava em mim própria.
Aos vinte e seis anos, já trabalhava como professora numa escola secundária. Ainda vivia em casa dos pais. O meu salário ajudava nas contas e eu continuava a ser o pilar da família. A Inês foi estudar para o Porto e o meu irmão arranjou emprego em Lisboa. Só eu fiquei.
Uma noite de inverno, depois de um dia exaustivo de aulas e reuniões, cheguei a casa e encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha, com as mãos na cabeça.
— O teu pai está no hospital — disse ela sem me olhar nos olhos. — Foi outra vez o coração.
Senti as pernas fraquejarem. Liguei para o hospital, organizei os medicamentos dele, preparei um saco com roupa. Passei a noite em claro ao lado dele, ouvindo-o ressonar entre gemidos e tosses secas.
No dia seguinte, faltei ao trabalho pela primeira vez em anos. A diretora ligou-me:
— Mariana, precisamos de si para substituir a professora Ana na turma do 12º B.
— Não posso — respondi com voz trémula. — O meu pai está internado.
Do outro lado da linha, silêncio. Depois um suspiro:
— Compreendo… mas tente não faltar mais vezes.
Senti-me culpada por não estar no trabalho e culpada por desejar estar longe dali. Era como se nunca fosse suficiente para ninguém.
Alguns meses depois, num domingo à tarde, estávamos todos reunidos à mesa: eu, os meus pais, a Inês (que veio do Porto de propósito) e o meu irmão com a namorada nova. Falavam alto sobre futebol e política quando a minha mãe se virou para mim:
— Mariana, quando é que pensas sair de casa? Já tens idade para ter vida própria!
Fiquei sem palavras. Olhei para ela e vi nos olhos dela algo entre reprovação e pena.
— Mãe… eu fiquei porque vocês precisavam de mim…
Ela encolheu os ombros:
— Todos temos problemas. Não podes viver sempre para os outros.
O meu irmão riu-se:
— A Mariana gosta é de ser mártir!
A Inês olhou-me com compaixão:
— Tu mereces ser feliz também…
Levantei-me da mesa sem dizer palavra e fechei-me no quarto. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Pela primeira vez questionei tudo: teria valido a pena abdicar tanto? Quem era eu sem eles?
Naquela noite sonhei que estava numa fila interminável. À minha frente, pessoas com sacos pesados nas mãos esperavam em silêncio. Uma mulher virou-se para mim:
— Esta é a fila para quem dá tudo aos outros — disse ela com um sorriso triste. — Eu sou a número 452, tu és a 453.
Acordei sobressaltada e percebi que estava cansada de esperar pela minha vez.
No dia seguinte tomei uma decisão: ia procurar um apartamento só para mim em Lisboa. Liguei à minha mãe:
— Mãe, vou sair de casa.
Do outro lado ouvi silêncio. Depois ela disse apenas:
— Faz o que achares melhor.
Arranjei um T1 pequeno perto da escola onde dava aulas. Nos primeiros dias sentia-me perdida — não sabia cozinhar só para mim, não sabia o que fazer com tanto silêncio. Mas aos poucos fui descobrindo pequenos prazeres: ler um livro sem interrupções, tomar banho demorado sem pressa, escolher o que queria jantar sem pensar nos outros.
A família reagiu mal ao início. O meu pai deixou de me ligar durante semanas. A minha mãe fazia comentários passivo-agressivos:
— Agora que tens tempo livre podias vir cá ajudar…
Mas eu mantive-me firme. Comecei a sair com colegas do trabalho, fui ao cinema sozinha pela primeira vez desde os dezasseis anos. Conheci o Miguel numa livraria do Chiado; ele gostava de poesia portuguesa e tinha um sorriso tímido.
Um dia convidei-o para jantar no meu apartamento. Cozinhei massa com cogumelos e vinho branco; rimos tanto que me doeram as bochechas.
— Mariana, tu és especial — disse ele enquanto arrumávamos a loiça juntos.
Senti vontade de chorar. Pela primeira vez alguém via quem eu era sem pedir nada em troca.
Ainda hoje luto contra a culpa sempre que escolho pensar em mim primeiro. Mas aprendi que ninguém pode dar amor se não souber cuidar de si próprio.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem presas ao papel de salvadoras sem nunca se salvarem? Será egoísmo querer ser feliz? E vocês — já sentiram este peso invisível dos sacrifícios não vistos?