O Último Abraço à Beira do Tejo: As Palavras do Meu Irmão Que Ecoam Para Sempre
— Mariana, espera! — gritou o Tiago, a voz dele a tremer entre o medo e a urgência, enquanto eu corria pela margem do Tejo, os pés a escorregar nas pedras húmidas. O vento de março cortava-me a cara, mas nada me detinha. Tinha doze anos e achava que podia desafiar o mundo inteiro, até mesmo o rio que tantas vezes nos acolheu nas tardes de verão.
O Tiago era dois anos mais velho, mas sempre foi mais prudente. Eu era a tempestade, ele o abrigo. Lembro-me de olhar para trás e ver o rosto dele, pálido, os olhos castanhos arregalados de preocupação. — Mariana, não vás tão longe! — insistiu, mas eu ri, convencida de que nada me podia acontecer.
Foi nesse instante que ouvi um estalido — uma pedra solta sob o meu pé. Senti o corpo a perder o equilíbrio e caí, primeiro de joelhos, depois de lado, até deslizar para a água gelada. O choque foi tão grande que perdi o fôlego. O Tejo engoliu-me num abraço frio e escuro. Lutei para subir à superfície, mas as roupas pesadas puxavam-me para baixo.
Ouvi um grito abafado — o Tiago. Senti-o saltar atrás de mim, sem hesitar. As mãos dele agarraram-me pelo braço, puxando-me para cima. — Aguenta, Mariana! — sussurrou ele, com uma força que nunca lhe conheci. Mas a corrente era traiçoeira e arrastou-nos para longe da margem.
Tudo aconteceu tão depressa. Lembro-me do sabor salgado da água, do desespero nos olhos do Tiago quando percebeu que não conseguia nadar contra a corrente. — Não te largues de mim! — pediu ele, mas as minhas mãos escorregaram das dele. Por um segundo eterno, vi-o lutar, vi-o desaparecer na espuma branca do rio.
Quando acordei no hospital, a minha mãe estava sentada ao meu lado, os olhos vermelhos de tanto chorar. O meu pai olhava para o chão, as mãos fechadas em punhos. Ninguém precisava de dizer nada — percebi logo que o Tiago não tinha voltado comigo.
Os dias seguintes foram um nevoeiro de dor e silêncio. A minha mãe culpava-se por nos ter deixado ir brincar sozinhos. O meu pai culpava-se por não ter estado lá. Eu… eu não sabia quem culpar. Talvez o rio, talvez a minha própria imprudência.
— Mariana, porque foste tão teimosa? — perguntou-me a minha mãe uma noite, a voz dela partida em mil pedaços.
— Eu só queria correr… — respondi, mas as palavras morreram-me na garganta. O vazio deixado pelo Tiago era tão grande que parecia engolir tudo à volta.
Na escola, os colegas olhavam para mim com pena ou evitavam-me por completo. A professora de Português tentou consolar-me: — A vida é feita de perdas, Mariana… — mas eu só queria gritar-lhe que ninguém sabia o que era perder um irmão assim.
O funeral foi um borrão de rostos tristes e flores brancas. Lembro-me do padre dizer que o Tiago era agora um anjo no céu. Mas eu não queria um anjo — queria o meu irmão de volta.
As semanas passaram e a nossa casa tornou-se um lugar estranho. O quarto do Tiago ficou fechado durante meses; ninguém tinha coragem de entrar lá. A minha mãe deixou de cozinhar os pratos preferidos dele. O meu pai passou a chegar mais tarde do trabalho, como se evitasse enfrentar a ausência.
Uma noite ouvi-os discutir na cozinha:
— Não podemos continuar assim! — gritou o meu pai.
— E como queres que continue? Perdi o meu filho! — respondeu a minha mãe, soluçando.
— E a Mariana? Vais perdê-la também?
Fiquei à porta, sem coragem de entrar. Senti-me invisível, como se tivesse morrido com o Tiago naquele dia.
Comecei a ter pesadelos com o rio. Acordava a meio da noite a gritar pelo nome dele. A minha mãe vinha ao meu quarto e abraçava-me com força, mas eu sentia sempre frio.
Um dia decidi entrar no quarto do Tiago. O cheiro dele ainda pairava no ar: misto de livros velhos e perfume barato. Sentei-me na cama e encontrei um caderno escondido na gaveta da mesa-de-cabeceira. Folheei as páginas cheias de desenhos e frases soltas:
“A Mariana é chata mas é a melhor irmã do mundo.”
Chorei até não ter mais lágrimas.
Aos poucos comecei a escrever cartas ao Tiago. Contava-lhe sobre os meus dias na escola, sobre os silêncios em casa, sobre as saudades que me sufocavam. Escrevia-lhe tudo o que não consegui dizer naquele último dia à beira do Tejo.
A minha mãe encontrou uma dessas cartas e leu-a em silêncio. Depois abraçou-me como nunca antes:
— Ele sabia que gostavas dele, Mariana…
Mas será que sabia mesmo? Será que ouviu as minhas desculpas no fundo do rio?
O tempo passou devagarinho. Fui crescendo com aquela dor cravada no peito. Os meus pais tentaram reconstruir-se à sua maneira: a minha mãe começou a fazer voluntariado numa associação de apoio ao luto; o meu pai voltou a pescar ao Tejo, como fazia com o Tiago antes de tudo acontecer.
Eu continuei a escrever cartas ao meu irmão durante anos. Às vezes sentia-o perto de mim — no cheiro da terra molhada depois da chuva ou no som das gaivotas ao fim da tarde.
Hoje sou adulta e vivo em Lisboa, mas nunca mais consegui olhar para o Tejo sem sentir um aperto no coração. Ainda guardo o caderno do Tiago na minha mesa-de-cabeceira e leio-o sempre que preciso de me lembrar dele não como uma ausência, mas como uma presença silenciosa na minha vida.
Pergunto-me muitas vezes: se pudesse voltar atrás, teria feito tudo diferente? Ou será que há dores que simplesmente têm de ser vividas para nos tornarmos quem somos?
E vocês? Já sentiram uma perda tão grande que vos mudou para sempre?