O Silêncio do Meu Filho: Quando o Amor se Torna Peso – Confissões de uma Mãe Lisboeta

— Miguel, por favor, diz-me alguma coisa! — implorei, sentada à mesa da cozinha, as mãos trémulas a apertar a chávena de chá já frio. Ele olhou para mim com aqueles olhos castanhos que sempre foram o meu orgulho, mas agora pareciam vazios, como se todo o brilho tivesse sido sugado pela rotina e pelo peso dos dias.

— Mãe, não há nada para dizer. — A voz dele era baixa, quase um sussurro. — Está tudo bem.

Mas eu sabia que não estava. Desde que se casou com a Sofia, há três anos, Miguel tornou-se uma sombra do rapaz alegre que costumava encher a casa de gargalhadas. Agora, cada vez que vinha visitar-me ao nosso apartamento em Benfica, trazia consigo um silêncio pesado, quase palpável, que se instalava entre nós como uma parede invisível.

A Sofia raramente vinha. Quando vinha, sentava-se no sofá com o telemóvel na mão, os olhos fixos no ecrã, respondendo às minhas tentativas de conversa com monossílabos. Eu tentava não julgar — afinal, os tempos mudaram, as pessoas são diferentes — mas não conseguia evitar sentir-me rejeitada, como se a minha presença fosse um incómodo.

O meu filho mais novo, Pedro, dizia-me para não me meter. “Deixa-os viver a vida deles, mãe. O Miguel é adulto.” Mas como é que uma mãe pode ficar indiferente quando vê o filho a definhar? Como é que se aprende a aceitar o silêncio quando antes havia tanto para partilhar?

Uma noite, depois de mais uma visita gelada, sentei-me sozinha na sala. O relógio marcava quase meia-noite e eu não conseguia dormir. Peguei no telefone e disquei o número do Miguel. Ele atendeu ao terceiro toque.

— Mãe? Está tudo bem?

— Não está, Miguel. Não está tudo bem. — A minha voz tremeu. — Sinto-te tão longe… O que se passa contigo e com a Sofia?

Do outro lado ouvi apenas respiração. Depois, finalmente:

— Não sei explicar… É como se estivéssemos juntos mas sozinhos. Ela chega do trabalho cansada, eu também… Falamos pouco. Às vezes parece que nem nos conhecemos.

O silêncio dele cortou-me o coração. Lembrei-me do dia do casamento deles: o sorriso nervoso do Miguel, a alegria nos olhos da Sofia. Onde é que tudo se perdeu?

No domingo seguinte convidei-os para almoçar cá em casa. Fiz bacalhau à Brás, o prato preferido do Miguel desde pequeno. Quando chegaram, percebi logo que algo estava errado: entraram sem se olharem, cada um com o seu telemóvel na mão.

Durante o almoço tentei puxar conversa:

— Então, Sofia, como vai o trabalho no hospital?

Ela encolheu os ombros.

— Cansativo… Como sempre.

Miguel olhou para ela de lado e depois baixou os olhos para o prato.

— E tu, Miguel? Tens dormido melhor?

Ele deu um sorriso forçado.

— Mais ou menos…

O Pedro apareceu mais tarde e tentou animar o ambiente com piadas sobre futebol, mas ninguém parecia disposto a rir. No final do almoço, enquanto arrumava a loiça na cozinha, ouvi-os discutir baixinho na sala:

— Não precisavas de vir — disse Sofia.

— É a minha mãe… — respondeu Miguel.

— Pois…

As palavras dela eram afiadas como facas. Senti uma dor aguda no peito. O que é que tinha corrido tão mal? Será que eu tinha falhado como mãe? Será que devia ter feito mais para os ajudar?

Naquela noite liguei à minha irmã Helena. Sempre fomos muito próximas e ela era a única pessoa com quem conseguia desabafar sem medo de ser julgada.

— Teresa, tu não tens culpa de nada — disse ela. — Os casais têm fases difíceis. Mas tens de dar espaço ao Miguel… Se te metes demasiado podes afastá-lo ainda mais.

Mas como dar espaço quando tudo em mim gritava para proteger o meu filho? Como aceitar que ele estava infeliz e não poder fazer nada?

Os meses passaram e o silêncio entre eles só aumentou. O Miguel começou a vir cada vez menos cá a casa. Quando vinha, parecia sempre apressado para ir embora. Um dia apanhei-o à porta do prédio, pronto para sair antes mesmo de eu abrir a porta.

— Miguel! — chamei.

Ele virou-se devagar.

— Vais já embora?

Ele hesitou.

— A Sofia está à espera no carro…

Olhei pela janela e vi-a lá fora, impaciente ao volante.

— Filho… — comecei, mas ele interrompeu-me:

— Mãe, por favor… Não compliques as coisas.

Fechei a porta devagar quando ele saiu. Senti-me tão sozinha como nunca antes na vida. O Pedro tentava animar-me com visitas e conversas animadas sobre o trabalho dele numa agência de publicidade, mas eu via nos olhos dele a mesma preocupação que sentia no meu peito.

Uma tarde chuvosa de novembro recebi uma chamada inesperada da Sofia.

— Dona Teresa… Desculpe ligar assim… O Miguel está diferente… Anda triste… Eu não sei o que fazer.

A voz dela tremia. Pela primeira vez ouvi nela fragilidade em vez de frieza.

— Sofia… Vocês já pensaram em pedir ajuda? Falar com alguém?

Ela suspirou.

— Ele não quer… Diz que é só uma fase… Mas eu sinto-me tão sozinha ao lado dele…

Ouvindo-a percebi que ambos estavam presos num ciclo de silêncio e mágoa do qual não sabiam sair. E eu ali, impotente.

No Natal desse ano tentei reunir todos cá em casa. Preparei tudo com carinho: as luzes na varanda, o cheiro das rabanadas no ar, os presentes embrulhados com fitas vermelhas. Mas quando chegaram percebi logo que nada disso ia remediar o vazio entre eles.

Durante a ceia houve um momento em que todos ficaram calados. Olhei para o Miguel e vi lágrimas nos olhos dele. Levantou-se da mesa sem dizer palavra e saiu para a varanda. Fui atrás dele.

— Filho… — pus-lhe a mão no ombro — Não tens de carregar tudo sozinho.

Ele olhou para mim com uma dor tão funda que me cortou a alma.

— Mãe… Eu já não sei quem sou ao lado dela… Sinto-me invisível…

Abraçámo-nos ali na varanda fria enquanto as luzes da cidade brilhavam ao longe. Percebi então que às vezes o amor pode mesmo tornar-se um peso insuportável quando não há diálogo nem compreensão.

Depois daquela noite as coisas mudaram devagarinho. O Miguel começou terapia sozinho; a Sofia aceitou procurar ajuda também. Não foi fácil — houve discussões feias, lágrimas e portas batidas — mas aos poucos foram encontrando um caminho para se ouvirem um ao outro.

Hoje olho para trás e penso: quantas famílias vivem presas neste silêncio? Quantas mães sentem esta impotência diante da dor dos filhos adultos? Será que alguma vez aprendemos verdadeiramente a deixar ir sem deixar de amar?