O Silêncio de Tiago: Entre o Medo e a Esperança
— Não brinques aí sozinho, Tiago! — gritei, mas a minha voz perdeu-se no vento gelado daquela manhã de novembro. O parque estava quase vazio, só se ouvia o ranger do baloiço e o som abafado dos meus próprios passos na gravilha. Tiago olhou-me de relance, olhos escuros e fundos, e continuou a balançar-se como se eu não existisse. Senti um aperto no peito. Não era normal uma criança estar ali, tão cedo, sem ninguém por perto.
Aproximei-me devagar. — Onde estão os teus pais? — perguntei, tentando soar calma. Ele encolheu os ombros, sem parar de se embalar. O silêncio dele era ensurdecedor. Sentei-me no banco ao lado e fiquei ali, a observá-lo, enquanto o frio me mordia as mãos. Não sabia o que fazer. O instinto dizia-me para não o deixar sozinho.
Quando finalmente se cansou, Tiago saltou do baloiço e começou a caminhar para fora do parque. Levantei-me num impulso. — Espera! Queres vir tomar um pequeno-almoço quente lá a casa? — arrisquei. Ele hesitou, olhou-me nos olhos pela primeira vez. Vi medo, mas também fome. Acenou com a cabeça.
Em casa, Miguel olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido. — Trouxeste um miúdo desconhecido para casa? E se ele tiver família? E se nos meterem em sarilhos?
— Ele estava sozinho, Miguel! Não consegui deixá-lo lá — respondi, já com lágrimas nos olhos. — Olha para ele…
Tiago sentou-se à mesa, as mãos sujas agarradas à caneca de leite quente que lhe dei. Não disse uma palavra. Só comeu, devagar, como se tivesse medo que lhe tirássemos a comida.
Os dias seguintes foram um turbilhão. Liguei para a escola da zona, para a Junta de Freguesia, até para a GNR. Ninguém sabia de nenhum Tiago desaparecido. A assistente social apareceu em nossa casa dois dias depois.
— O menino não fala muito — disse ela, folheando papéis. — Parece que vive com uma tia distante, mas ninguém sabe ao certo onde ela anda. O caso está sinalizado há meses.
Miguel bufou de frustração quando ela saiu. — Isto é Portugal, Maria. Se não formos nós a fazer alguma coisa…
Tiago foi ficando. Aos poucos, começou a falar connosco. Contou-nos que a mãe tinha ido “trabalhar para longe” e nunca mais voltou. O pai era uma sombra que aparecia de vez em quando para lhe deixar uns trocos e desaparecer outra vez. A tia… bem, a tia era mais lenda do que realidade.
Mas nem tudo era fácil. Miguel começou a chegar mais tarde do trabalho. Eu sentia-o distante. Uma noite, explodiu:
— Não aguento mais esta pressão! Não somos pais dele! E se nunca mais conseguimos ter paz?
Chorei em silêncio nessa noite. Senti-me egoísta por querer ajudar Tiago quando nem sabia se conseguia manter a minha própria família unida.
Os vizinhos começaram a falar. “A Maria agora acolhe crianças abandonadas?”, ouvi num sussurro ao passar pelo café da esquina. A minha mãe ligou-me:
— Filha, estás-te a meter em problemas que não são teus. Olha que depois ninguém te agradece.
Mas eu não conseguia desistir de Tiago. Havia noites em que ele acordava a gritar, suado e trémulo. Corria para o nosso quarto e agarrava-se a mim como se eu fosse o último porto seguro do mundo.
Um dia, quando cheguei do trabalho, encontrei Miguel sentado à mesa com Tiago ao colo, ambos a rir-se de um desenho animado na televisão. Senti esperança.
Mas o sistema não perdoa quem tenta contornar as regras. Recebemos uma carta do tribunal: tínhamos de entregar Tiago à instituição até decisão final sobre o seu futuro.
— Não vou deixá-lo ir! — gritei ao telefone para a assistente social.
— Maria, compreendo… mas há procedimentos legais — respondeu ela, cansada.
Na noite anterior à entrega, Tiago sentou-se na cama e olhou-me nos olhos:
— Vais deixar-me ir embora?
O meu coração partiu-se em mil pedaços.
No dia seguinte, levei-o à instituição. Ele não chorou; só me olhou com aqueles olhos fundos e vazios.
Voltei para casa vazia. Miguel tentou consolar-me:
— Fizemos tudo o que podíamos.
Mas será que fizemos mesmo? Será que o amor chega quando tudo o resto falha? Ou será que há feridas que nem o tempo nem o carinho conseguem sarar?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Será que alguma vez conseguimos mesmo mudar o destino de alguém?