O Silêncio da Minha Filha: Entre o Medo e a Esperança

— Maria Inês, atende, por favor… — sussurrei para o vazio, o telemóvel colado ao ouvido, enquanto o sinal de chamada ecoava pela quinta vez naquela manhã. O silêncio do outro lado era ensurdecedor. Desde que a minha filha se casara com o Rui e se mudara para uma aldeia nos arredores de Santarém, nunca tínhamos passado mais de dois dias sem falar. Agora, já ia em sete dias de ausência. O coração apertava-se-me no peito, cada batida mais pesada que a anterior.

Na noite anterior, sentei-me à mesa da cozinha, rodeada pelas sombras da casa vazia, e tentei convencer-me de que era só uma fase. “Talvez esteja ocupada com o trabalho na escola, ou com as tarefas da quinta”, pensei. Mas a inquietação não me largava. Lembrei-me das vezes em que Maria Inês me ligava só para contar como as galinhas tinham fugido do galinheiro ou para partilhar uma receita nova de broa de milho. Agora, nada. Nem uma mensagem.

Na manhã seguinte, decidi: ia até lá. Preparei um saco com algumas coisas — pão fresco, compota de abóbora, e o xaile azul que ela tanto gostava — e pus-me ao volante do meu velho Renault Clio. A viagem parecia interminável. Cada curva da estrada era um nó na garganta, cada árvore um presságio sombrio. O rádio tocava baixinho, mas nem a música conseguia abafar os meus pensamentos: “E se aconteceu alguma coisa? E se ela está doente? E se…”

Quando finalmente cheguei à aldeia, o céu estava carregado de nuvens cinzentas. A casa da Maria Inês parecia ainda mais isolada do que me lembrava. O portão rangeu quando o empurrei. Chamei pelo nome dela, mas só o eco respondeu. Bati à porta — uma, duas, três vezes — até que ouvi passos arrastados do outro lado.

A porta abriu-se lentamente e ali estava ela. O rosto pálido, os olhos fundos e sem brilho. Mas o que mais me chocou foram as mãos: as unhas estavam partidas, algumas sangravam, outras tinham marcas profundas como se tivessem sido roídas até ao sabugo.

— Mãe… — murmurou ela, a voz quase inaudível.

— Maria Inês! O que aconteceu contigo? — perguntei, já com lágrimas nos olhos.

Ela desviou o olhar e tentou esconder as mãos atrás das costas.

— Não é nada… Só ando cansada — respondeu, mas a voz tremia.

Entrei sem pedir licença e abracei-a. O cheiro dela era diferente — misturava suor frio e algo metálico. Olhei em volta: a casa estava desarrumada, pratos sujos empilhados na banca, roupa espalhada pelo chão. O silêncio era pesado.

— Onde está o Rui? — perguntei.

Ela hesitou antes de responder:

— Foi trabalhar cedo… Tem estado muito ocupado ultimamente.

Sentei-me com ela à mesa e tentei puxar conversa sobre coisas banais: as galinhas, a horta, os vizinhos. Mas ela respondia com monossílabos, sempre a olhar para baixo. Notei que tremia ligeiramente e mordia o lábio inferior.

— Filha, tu sabes que podes contar comigo para tudo, não sabes? — arrisquei.

Ela assentiu em silêncio.

O tempo foi passando e tentei distraí-la com o pão e a compota que trouxera. Mas ela mal tocou na comida. De repente, ouviu-se um carro a chegar. Maria Inês enrijeceu imediatamente.

— É o Rui — sussurrou ela, quase em pânico.

O homem entrou na cozinha sem sequer me cumprimentar. Olhou para mim com desconfiança e depois para Maria Inês.

— Não disseste que vinhas ter visitas — disse ele seco.

— Foi uma surpresa — respondi eu, tentando manter a voz firme.

Ele limitou-se a encolher os ombros e saiu para o quintal. Assim que ele desapareceu de vista, Maria Inês começou a chorar baixinho.

— Mãe… eu não sei o que fazer… — soluçou ela.

Abracei-a com força e senti o corpo dela tremer nos meus braços.

— Ele tem sido diferente… Grita comigo por tudo e por nada… Às vezes… às vezes tenho medo dele — confessou entre lágrimas.

O meu coração partiu-se em mil pedaços naquele instante. Quis gritar, quis pegar nela e levá-la dali naquele momento. Mas sabia que não era assim tão simples.

— Filha, tu não estás sozinha. Eu estou aqui contigo — disse-lhe ao ouvido.

Passei aquela noite com ela. Ouvia os passos do Rui pela casa como se fossem trovões prestes a rebentar. Cada vez que ele entrava na divisão, Maria Inês encolhia-se ainda mais.

No dia seguinte, tentei convencê-la a vir comigo para Lisboa. Ela hesitava:

— E se ele ficar pior? E se fizer alguma coisa?

— O importante és tu! — insisti eu. — Não podes continuar assim!

Depois de muita conversa e lágrimas partilhadas, Maria Inês finalmente concordou em passar uns dias comigo na cidade. Arrumámos algumas roupas à pressa enquanto Rui estava no campo.

Quando ele voltou e percebeu o que estava a acontecer, explodiu:

— Vais fugir? Vais deixar tudo por causa das paranoias da tua mãe?

Maria Inês tremeu mas manteve-se firme ao meu lado.

— Preciso de tempo para mim — disse ela baixinho.

Ele bufou e saiu batendo a porta com força suficiente para fazer tremer as janelas.

No carro, durante a viagem de regresso, Maria Inês chorou em silêncio enquanto eu lhe segurava a mão ferida entre as minhas.

Em Lisboa, procurei ajuda para ela: psicóloga, apoio jurídico, tudo o que estivesse ao meu alcance. Os dias passaram devagarinho; cada pequeno sorriso dela era uma vitória silenciosa contra o medo.

Hoje olho para trás e vejo como tudo pode mudar num instante. Como uma ausência de chamadas pode ser um grito silencioso por socorro. Como as marcas nas mãos podem contar histórias que ninguém quer ouvir.

Pergunto-me: quantas mães ignoram os sinais? Quantas filhas continuam presas ao medo? E vocês… já ouviram algum silêncio assim?