O Sacrifício de Uma Mãe: A Luta de Teresa e a Nossa Traição Involuntária
— Não me peças para escolher entre ti e eles, Miguel! — gritei, a voz embargada, enquanto segurava as lágrimas que ameaçavam cair no chão frio da cozinha. O Miguel olhou-me com aquele olhar cansado, como se já tivesse desistido de lutar por nós. — Teresa, isto não é vida. Estamos a arrastar-nos há meses. Os miúdos sentem tudo. — Ele virou-me as costas, pegou nas chaves e saiu, deixando-me sozinha com o som da porta a bater e o eco do vazio.
Naquela noite, sentei-me no chão da sala, entre brinquedos espalhados e papéis do divórcio. O silêncio era ensurdecedor. O Pedro, com apenas oito anos, dormia no quarto ao lado, agarrado ao urso de peluche que lhe dei quando nasceu. A Inês, adolescente rebelde de quinze anos, trancou-se no quarto e só saía para ir à escola ou para me lançar olhares de desprezo. Senti-me esmagada pelo peso da responsabilidade. Como é que ia conseguir criar dois filhos sozinha em Lisboa, com um ordenado de assistente administrativa e uma renda que me deixava quase sem dinheiro para comer?
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. O Miguel ligava só para saber dos miúdos, nunca de mim. A minha mãe, a Dona Amélia, ligava todos os dias a perguntar se eu precisava de alguma coisa, mas eu sabia que ela própria mal tinha para ela. O meu pai morreu cedo e a minha mãe sempre foi mulher de poucas posses e muitos princípios. “Teresa, não te esqueças: dignidade acima de tudo”, dizia ela.
No trabalho, o ambiente era tóxico. A minha chefe, a Dona Lurdes, fazia questão de me lembrar todos os dias que eu era facilmente substituível. “Teresa, não se esqueça do relatório até ao fim do dia! E veja lá se não se atrasa outra vez por causa dos seus filhos…” Engoli em seco tantas vezes que já nem sentia o sabor da humilhação.
Em casa, as discussões com a Inês tornaram-se rotina. Uma noite, depois de ela chegar tarde da escola, sentei-me ao pé dela na cama.
— Inês, precisamos de conversar.
Ela revirou os olhos.
— Outra vez? Já sei o que vais dizer: que tenho de ajudar mais em casa, que não posso sair tanto…
— Não é isso… — tentei manter a calma — Só quero saber se estás bem.
Ela levantou-se bruscamente.
— Não estou! Não estou bem! Odeio esta casa! Odeio esta vida! Porquê que não ficaste com o pai?
Senti um nó na garganta. Como explicar-lhe que tentei tudo? Que aguentei anos de silêncio e distância só para lhes dar uma família? Mas não consegui dizer nada. Só consegui abraçá-la enquanto ela chorava baixinho.
O Pedro era diferente. Mais calado, mais sensível. Uma noite ouvi-o a rezar baixinho no quarto: “Deus, faz com que a mãe sorria outra vez”. Fui ao quarto dele e sentei-me na cama.
— Pedro, está tudo bem?
Ele olhou para mim com aqueles olhos grandes.
— Mãe, tu vais ficar connosco para sempre?
Abracei-o com força.
— Vou sempre estar aqui para ti e para a tua irmã.
Mas as contas não paravam de chegar. A luz foi cortada uma vez porque não consegui pagar a tempo. Tive de pedir dinheiro emprestado à minha amiga Carla para comprar livros escolares à Inês. Comecei a fazer limpezas ao fim de semana para ganhar mais algum. As mãos começaram a gretar do detergente barato e do frio do inverno lisboeta.
Aos poucos, fui-me afastando dos amigos. Já não tinha tempo nem energia para cafés ou conversas longas. Só existia trabalho-casa-trabalho. Os meus sonhos ficaram guardados numa gaveta fechada à chave.
Um dia, a Inês chegou a casa com um rapaz mais velho. Chamava-se Rui e tinha ar de quem já tinha visto demasiado para a idade dele.
— Mãe, este é o Rui. Vai jantar connosco hoje.
Tentei sorrir mas senti o estômago apertado.
Durante o jantar, percebi que havia ali algo errado. O Rui falava pouco mas olhava demasiado para a Inês. Depois daquela noite, comecei a reparar que ela chegava cada vez mais tarde e trazia um cheiro estranho na roupa — uma mistura de tabaco e algo que não consegui identificar logo.
Confrontei-a uma noite:
— Inês, andas metida em alguma coisa?
Ela explodiu:
— Tu não percebes nada! Só sabes trabalhar e reclamar! Nunca estás presente!
Fiquei sem palavras. Será que estava mesmo tão ausente? Será que o meu esforço para lhes dar tudo os estava a afastar?
O Pedro começou a ter más notas na escola. Chamaram-me à reunião com a professora.
— Dona Teresa, o Pedro está muito distraído. Parece triste. Alguma coisa se passa em casa?
Senti-me exposta. Tentei explicar sem entrar em detalhes mas vi nos olhos da professora um julgamento silencioso.
Numa noite chuvosa de março, recebi uma chamada da polícia: a Inês tinha sido apanhada numa festa ilegal com drogas leves. Fui buscá-la à esquadra com o coração nas mãos. No caminho para casa ninguém falou. Quando chegámos, sentei-me no sofá e chorei como nunca tinha chorado antes.
No dia seguinte, liguei à minha mãe.
— Mãe, falhei como mãe?
Ela respondeu:
— Teresa, tu deste tudo o que tinhas. Mas às vezes os filhos têm de cair para aprenderem a levantar-se.
Os meses passaram devagar. A Inês começou terapia na escola e afastou-se do Rui. O Pedro voltou a sorrir aos poucos quando comecei a ter mais tempo para ele — mesmo que fosse só meia hora antes de dormir.
Um dia, ao arrumar caixas antigas no sótão da minha mãe, encontrei uma fotografia minha em criança: sorridente ao colo do meu pai antes dele morrer num acidente de trabalho na construção civil. Olhei para aquela menina e perguntei-me: onde ficou aquela esperança?
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi — mas também tudo o que ganhei: coragem, resiliência e um amor incondicional pelos meus filhos. Mas pergunto-me: será que fiz as escolhas certas? Será que o sacrifício de uma mãe é suficiente para proteger os filhos dos erros do mundo — ou acabamos por traí-los sem querer?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam por amor aos vossos filhos?