O Sacrifício de Mariana: Quando o Amor de Irmã Ultrapassa a Dor

— Mariana, tens mesmo a certeza do que vais fazer? — A voz da minha mãe ecoava pelo corredor, trémula, quase suplicante. Eu estava parada à porta do escritório, com os papéis na mão, sentindo o peso do mundo nos ombros. O cheiro a café frio misturava-se com o perfume doce da minha infância, agora tão distante.

Olhei para ela, para os olhos cansados de quem já viu demasiado. — Não há outra saída, mãe. A Inês precisa disto mais do que eu.

A verdade é que nunca fui apenas irmã da Inês. Era filha do segundo casamento do meu pai, mas desde pequena que a tratei como se fosse minha. Quando ela nasceu, eu já tinha dez anos e lembro-me de prometer ao meu pai, no hospital, que ia protegê-la sempre. Ele sorriu e apertou-me a mão. Mal sabia eu que aquela promessa me ia perseguir até hoje.

A nossa família nunca foi perfeita. O meu pai morreu cedo, num acidente de carro na A1, quando eu tinha vinte e três anos. Ficámos só nós as três: eu, a minha mãe e a Inês. A minha mãe fechou-se numa tristeza silenciosa e eu tornei-me tudo para a Inês — irmã, mãe, amiga. Ela era a luz da casa, mesmo quando tudo parecia escuro.

Os anos passaram e casei-me com o João. Ele era calmo, trabalhador, mas nunca entendeu bem o laço que me unia à Inês. Dizia que eu me preocupava demasiado com ela, que estava a sacrificar a minha própria felicidade. Talvez tivesse razão.

Quando o João morreu de repente — um enfarte fulminante numa manhã de inverno — senti-me a afundar num vazio sem fim. A Inês foi o meu porto de abrigo. Ela largou tudo para me apoiar: o curso de enfermagem, os amigos, até o namorado da altura. Ficámos as duas sozinhas contra o mundo.

Foi nessa altura que conheci o Miguel. Ele era diferente: aventureiro, apaixonado pela vida. Fez-me sentir viva outra vez. Mas a Inês não gostava dele. Dizia que ele era egoísta, que só pensava nele próprio. Tivemos discussões feias por causa disso.

— Mariana, ele não é bom para ti! — gritava ela uma noite, depois de um jantar em que o Miguel chegou atrasado e saiu antes da sobremesa.

— Tu não percebes! Preciso de alguém que me faça esquecer tudo isto! — respondi-lhe, com lágrimas nos olhos.

Ela ficou calada e saiu de casa. Só voltou no dia seguinte.

O tempo passou e as feridas foram sarando devagarinho. A Inês casou-se com o Pedro, um rapaz simples de Vila Real. Pareciam felizes, mas algo não batia certo. Um dia, encontrei-a sentada no chão da cozinha, a chorar baixinho.

— O Pedro traiu-me — confessou-me, com a voz partida.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Quis protegê-la como sempre fizera, mas desta vez era diferente. Ela pediu-me segredo e apoio. Ajudei-a com o divórcio, com as burocracias todas, com as noites em claro.

Foi nessa altura que recebi uma carta do advogado do meu pai: havia uma propriedade no Douro que estava em meu nome desde a morte dele. Uma quinta pequena mas valiosa — era o nosso refúgio de infância. O advogado explicou-me que podia vendê-la ou transferi-la para quem quisesse.

A Inês precisava de um recomeço. Tinha perdido tudo no divórcio: casa, estabilidade, até parte dos amigos em comum com o Pedro. Vi nela o mesmo vazio que senti quando perdi o João.

— Mariana, não posso aceitar isso — disse-me ela quando lhe contei da quinta.

— Não é uma questão de aceitar ou não — respondi-lhe firme. — É tua por direito. O pai queria que estivéssemos sempre juntas e felizes.

Assinei os papéis naquele dia chuvoso, com a minha mãe a assistir em silêncio. Senti um alívio estranho misturado com tristeza.

Durante meses tentei convencer-me de que fiz o certo. Mas as coisas não correram como esperava. A Inês mudou-se para a quinta e afastou-se cada vez mais de mim. Começou a namorar um empresário local e envolveu-se em negócios duvidosos. Deixou de atender as minhas chamadas, respondia às mensagens com monosílabos.

A minha mãe adoeceu pouco depois — um cancro agressivo levou-a em menos de seis meses. Fiquei sozinha na cidade grande, sem família por perto.

Um dia decidi ir à quinta sem avisar. Encontrei a Inês diferente: fria, distante, quase irreconhecível.

— Vieste fazer o quê? — perguntou ela sem me olhar nos olhos.

— Queria ver como estavas… Senti saudades — respondi baixinho.

Ela encolheu os ombros e voltou ao computador.

— Estou ocupada agora.

Saí dali com o coração despedaçado. Senti que tinha perdido tudo: marido, mãe, irmã…

Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Lisboa. Trabalho demais para não pensar no passado. Às vezes pergunto-me se teria sido melhor guardar a quinta para mim ou vendê-la logo após receber a carta do advogado.

Mas depois lembro-me da promessa feita ao meu pai: proteger sempre a Inês.

Será que fiz bem? Ou será que amar alguém demais pode ser também uma forma de perdermos a nós próprios?

E vocês? Até onde iriam por alguém que amam?