O Prato Quebrado: Entre Espumas e Segredos
— Não me peças para lavar mais nada, mãe! — gritei, sentindo a água quente a escorrer pelos pulsos enquanto esfregava o fundo de uma panela que parecia nunca mais ficar limpa.
A Andreia nem se dignou a olhar para mim. Sentada no sofá, olhos vidrados na novela da noite, só murmurou:
— Se não gostas, deixa estar. Eu faço depois.
Mas eu sabia que era mentira. Se eu não lavasse, a loiça ficava ali até ao dia seguinte, e depois era ouvir a minha mãe resmungar quando viesse cá jantar ao domingo. Suspirei fundo, tentando ignorar o cheiro entranhado de cebola e o barulho da televisão na sala.
O telefone vibrou no bolso. Era o meu irmão, Rui. Hesitei antes de atender, mãos molhadas e ensaboadas.
— Sim?
— Olha, podes vir cá hoje? Preciso de falar contigo. — A voz dele soava estranha, tensa.
— Agora não dá, estou a lavar a loiça. — Tentei brincar, mas ele não riu.
— É sério, Miguel. É sobre o pai.
O meu coração apertou-se. O pai tinha morrido há três anos, mas o nome dele ainda era uma ferida aberta. Larguei o pano e fui à varanda, longe do barulho da televisão.
— O que é que se passa?
— Descobri uma coisa… Não quero dizer por telefone. Vens cá?
Olhei para a Andreia, que nem reparou na minha ausência. Pensei em inventar uma desculpa qualquer, mas acabei por dizer:
— Vou aí em meia hora.
A caminho da casa do Rui, as ruas de Almada pareciam mais frias do que nunca. Lembrei-me dos domingos em família, das discussões à mesa por causa do futebol ou das contas da casa. Tudo parecia tão distante agora.
Quando cheguei, o Rui estava à porta à minha espera. Tinha olheiras fundas e um ar que me deixou inquieto.
— Anda cá dentro — disse ele, quase num sussurro.
Entrámos na sala. A mãe estava sentada à mesa, olhos vermelhos. O Rui fechou a porta com cuidado.
— O que é que se passa? — perguntei, sentindo um nó no estômago.
O Rui olhou para a mãe e depois para mim.
— Encontrei isto no sótão — disse ele, pousando uma caixa de sapatos em cima da mesa.
Abri a caixa com mãos trémulas. Lá dentro estavam cartas antigas, fotografias a preto e branco e um envelope amarelecido com o nome do meu pai escrito à mão.
— O que é isto? — perguntei.
A mãe limpou as lágrimas e olhou-me nos olhos pela primeira vez em meses.
— O teu pai… tinha outra família.
O chão fugiu-me dos pés. Sentei-me sem saber o que dizer. O Rui continuou:
— Há cartas para uma tal de Teresa… E fotografias com uma rapariga que parece ter a nossa idade.
A mãe começou a falar, voz embargada:
— Eu descobri pouco antes dele morrer. Ele prometeu acabar tudo… Mas nunca tive coragem de vos contar.
Senti raiva, tristeza e uma estranha curiosidade a crescer dentro de mim. Como podia o meu pai ter escondido isto durante tantos anos? Olhei para as cartas, tentando decifrar aquela caligrafia familiar.
— E agora? — perguntei, quase num sussurro.
O Rui passou-me uma fotografia: o pai abraçado a uma mulher morena e a uma rapariga sorridente.
— Acho que devíamos conhecê-las — disse ele.
A mãe abanou a cabeça:
— Não quero saber dessa gente. Para mim, ele morreu duas vezes.
Mas eu não conseguia parar de pensar na rapariga da fotografia. Teria ela crescido a pensar no meu pai como herói? Ou também teria sentido o vazio das ausências?
Naquela noite não consegui dormir. A Andreia percebeu que algo estava errado quando cheguei a casa calado e distante.
— O que é que se passa contigo? — perguntou ela finalmente, já na cama.
Contei-lhe tudo. Ela ficou em silêncio durante uns segundos e depois disse:
— Tens de saber quem ela é. Não podes viver com essa dúvida para sempre.
Nos dias seguintes, o Rui e eu tentámos encontrar pistas sobre Teresa e a rapariga das fotografias. Descobrimos um endereço antigo numa das cartas e decidimos ir até lá num sábado de manhã.
O prédio era velho, com azulejos partidos e cheiro a mofo nas escadas. Batemos à porta do terceiro esquerdo. Uma mulher abriu-nos a porta: cabelo grisalho apanhado num coque apertado, olhos cansados mas vivos.
— Sim?
— Desculpe… A senhora é a Teresa?
Ela olhou-nos de cima a baixo antes de responder:
— Sou. Quem são vocês?
O Rui engoliu em seco:
— Somos filhos do António Silva…
O silêncio caiu pesado entre nós. Teresa levou as mãos à boca e começou a chorar baixinho.
— Ele… morreu? — perguntou ela finalmente.
Acenámos com a cabeça. Ela fez-nos sinal para entrar. A casa era simples mas cheia de fotografias nas paredes: António com Teresa, António com uma rapariga loira — claramente filha deles.
Sentámo-nos à mesa da cozinha. Teresa serviu-nos chá sem dizer palavra durante uns minutos. Depois começou:
— Eu sabia que um dia isto ia acontecer… Ele era um homem bom, mas fraco. Nunca conseguiu escolher entre as duas famílias.
O Rui olhou para mim, procurando coragem nas minhas palavras:
— E… ela? — perguntei, apontando para uma fotografia da rapariga loira.
Teresa sorriu tristemente:
— A Sofia está em Londres agora. Foi estudar para lá há dois anos… Sempre quis fugir daqui, talvez por causa dos segredos do pai.
Ficámos ali sentados durante horas, ouvindo histórias sobre um homem que conhecíamos mas afinal desconhecíamos tanto. Teresa mostrou-nos cartas que ele lhe escrevia quando estava connosco; falava de saudades, de promessas nunca cumpridas.
Quando saímos dali, senti-me mais leve mas também mais perdido do que nunca. O Rui parecia partilhar do mesmo sentimento.
Durante semanas tentei digerir tudo aquilo: o pai tinha sido duas pessoas ao mesmo tempo; tinha amado duas mulheres; tinha tido dois filhos em mundos paralelos que nunca se cruzaram até aquele dia.
A mãe recusava-se a falar sobre o assunto. A Andreia tentava apoiar-me mas eu sentia-me cada vez mais distante dela — como se todo o meu passado tivesse sido uma mentira bem contada.
Um dia recebi um email inesperado: era da Sofia. Teresa tinha-lhe contado sobre nós e ela queria conhecer-nos quando viesse a Portugal no verão.
O encontro foi estranho ao início: três irmãos sentados num café da Baixa lisboeta, tentando encontrar pontos em comum entre vidas tão diferentes. Mas aos poucos fomos descobrindo afinidades: o mesmo gosto por música portuguesa antiga; as mesmas manias ao falar; até o mesmo sorriso torto quando algo nos envergonhava.
No final desse dia senti algo novo: talvez fosse possível reconstruir alguma coisa a partir dos cacos deixados pelo meu pai.
Hoje olho para trás e penso: quantas famílias vivem presas em segredos assim? Quantas vezes deixamos de lavar os pratos — ou enfrentar os problemas — só porque custa demasiado encarar aquilo que está sujo?
E vocês? Já descobriram algum segredo capaz de mudar tudo aquilo em que acreditavam?