O Peso da Escolha: Quando o Amor de Mãe se Torna Dor
— Não aguento mais, Mariana! — gritei, a voz embargada, enquanto as lágrimas me queimavam o rosto. — Isto não é vida para ninguém!
Ela olhou-me com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os meus, mas cheios de uma raiva que nunca pensei ver numa filha. Beatriz, mais nova, encostada à ombreira da porta do quarto, mordia o lábio inferior, tentando conter o choro. O silêncio entre nós era tão pesado que quase sufocava.
Nunca imaginei que a minha casa, o meu refúgio, se transformasse num campo de batalha. Mas ali estávamos: eu, Teresa, 52 anos, mãe solteira desde que o António nos deixou há dez anos; Mariana, 24 anos, recém-licenciada mas sem trabalho; Beatriz, 19 anos, a estudar para os exames da faculdade e a viver no seu próprio mundo de música e redes sociais.
Tudo começou a desmoronar-se quando perdi o emprego na pastelaria do bairro. O dinheiro começou a faltar, as contas a acumular-se em cima da mesa da cozinha. Mariana passava os dias fechada no quarto, a enviar currículos que nunca eram respondidos. Beatriz saía à noite e voltava de madrugada, muitas vezes sem avisar. Eu sentia-me sozinha mesmo rodeada por elas.
— Achas que é fácil para mim? — Mariana respondeu finalmente, a voz trémula. — Estou a tentar! Mas ninguém me dá uma oportunidade!
— E eu? Achas que não tentei? — rebati. — Passei a vida a sacrificar-me por vocês! Agora preciso de ajuda e só encontro portas fechadas nesta casa!
Beatriz explodiu:
— Vocês só sabem gritar! Nunca me ouvem! Eu também estou cansada disto tudo!
A discussão tornou-se um turbilhão de acusações antigas: Mariana a culpar-me por não ter feito mais pelo pai delas; Beatriz a dizer que nunca lhe dei liberdade suficiente; eu a recordar-lhes as noites em claro quando eram pequenas e tinham febre, os aniversários em que fiz bolos com farinha emprestada da vizinha.
Naquela noite, depois de mais uma discussão que terminou com portas a bater e lágrimas abafadas nas almofadas, sentei-me sozinha na cozinha. O relógio marcava três da manhã. Olhei para as fotografias coladas no frigorífico: as meninas pequenas na praia da Caparica, sorrisos abertos e cabelos ao vento. Onde foi que tudo se perdeu?
No dia seguinte, tomei a decisão mais difícil da minha vida. Esperei que ambas estivessem na sala e disse:
— Meninas… Eu amo-vos mais do que tudo neste mundo. Mas isto não pode continuar assim. Preciso que saiam de casa. Preciso de espaço para respirar… e vocês também.
O silêncio foi absoluto. Mariana ficou branca como a cal das paredes. Beatriz deixou cair o telemóvel no chão.
— Estás a expulsar-nos? — Mariana sussurrou.
— Não é isso… — tentei explicar, mas as palavras fugiam-me. — Só quero que encontrem o vosso caminho. Aqui dentro estamos todos a sufocar.
Beatriz saiu sem dizer nada. Mariana ficou ali parada, os olhos cheios de lágrimas.
— Nunca pensei ouvir isto de ti — disse ela antes de sair também.
Os dias seguintes foram um vazio ensurdecedor. A casa parecia maior e mais fria sem elas. O cheiro do café de manhã já não enchia a cozinha; os risos (e até as discussões) faziam-me falta. Passei horas sentada à janela, olhando para a rua movimentada do bairro de Alvalade, perguntando-me se tinha feito o correto.
As vizinhas começaram a comentar:
— Então as meninas já não estão cá? — perguntava a Dona Emília do terceiro andar.
Eu sorria sem vontade:
— Foram procurar trabalho fora…
Mas por dentro sentia-me um fracasso como mãe.
Mariana foi viver com uma amiga em Almada; arranjou um trabalho precário num call center. Beatriz ficou uns tempos na casa do pai, mas logo voltou para Lisboa, partilhando um quarto minúsculo com colegas da faculdade.
As semanas passaram e o contacto tornou-se raro. Mensagens curtas: “Está tudo bem”, “Precisas de alguma coisa?”, “Boa sorte no exame”. Mas nunca mais jantámos juntas à mesa da cozinha.
Uma noite chuvosa de novembro, ouvi bater à porta. Era Beatriz, encharcada até aos ossos.
— Mãe… posso entrar?
Abracei-a com força. Chorámos juntas na sala escura.
— Desculpa… — sussurrou ela. — Senti tanto a tua falta.
— Eu também senti a tua — respondi.
Mariana demorou mais tempo. Só voltou meses depois, no Natal. Entrou devagarinho, com um embrulho nas mãos:
— Trouxe-te um bolo… Lembras-te daqueles que fazias quando éramos pequenas?
Sentei-me com elas à mesa. Falámos pouco; havia muito por dizer e muito por perdoar.
Hoje continuo sem saber se fiz o certo. A casa já não é igual; eu também não sou. Mas aprendi que amar às vezes é deixar partir — mesmo quando tudo em nós grita para segurar.
Será que algum dia me vão perdoar? Ou será que ser mãe é viver eternamente entre o amor e a culpa?