O Meu Irmão Pede-me Uma Segunda Oportunidade: Entre o Perdão e a Traição
— Não me peças isso, Rui! — gritei, sentindo a voz embargar-se-me na garganta. O corredor do meu pequeno apartamento em Lisboa parecia encolher à medida que o meu irmão mais novo, com os olhos vermelhos e as mãos trémulas, se encolhia diante de mim. Ao lado dele, a Ana, a mulher dele, olhava para o chão, como se quisesse desaparecer.
Nunca pensei que o Rui tivesse coragem de voltar a aparecer depois do que me fez. Ainda me lembro daquela noite, há quatro anos, quando descobri que ele tinha ficado com o dinheiro que eu juntei durante meses para abrir o meu próprio café. Dinheiro que ele prometeu guardar para mim, porque eu confiava nele mais do que em qualquer outra pessoa. Mas quando chegou o dia de assinar o contrato do espaço na Rua dos Douradores, a conta estava vazia. E o Rui desapareceu.
A minha mãe chorou durante semanas. O meu pai não falou comigo durante meses, convencido de que eu tinha inventado tudo para prejudicar o irmão mais novo. A família dividiu-se. Eu fiquei sozinho, com uma raiva surda e um vazio impossível de preencher.
Agora, ali estava ele, com a Ana, a pedir-me abrigo porque tinham sido despejados do quarto onde viviam em Odivelas.
— Por favor, Miguel… — murmurou o Rui. — Só precisamos de uns dias. Eu juro que desta vez não te vou desiludir.
Senti o peito apertar-se. Odiava-o por me ter traído, mas odiava-me ainda mais por sentir pena dele. Lembrei-me das noites em que éramos miúdos e dormíamos juntos na mesma cama porque tínhamos medo dos trovões. Lembrei-me das tardes em que jogávamos à bola no bairro da Graça e ele me protegia dos miúdos mais velhos.
Mas também me lembrei da humilhação de ter de pedir dinheiro emprestado ao tio António para pagar as dívidas que ficaram depois do roubo do Rui. Lembrei-me das mensagens frias da família: “O teu irmão sempre foi assim, Miguel. Não podes confiar nele.” Lembrei-me da vergonha de ver os meus sonhos desfeitos por alguém que eu amava.
— Não sei se consigo — disse-lhe, finalmente. — Não depois do que fizeste.
A Ana levantou os olhos, cheios de lágrimas.
— Miguel, eu sei que não tens razões para confiar no Rui… mas ele mudou. Ele está arrependido. Só precisamos de um sítio para dormir até arranjarmos trabalho.
Olhei para ela e vi sinceridade. Mas também vi medo. Medo de voltar para a rua, medo do futuro incerto.
— Só uns dias — disse o Rui, baixinho. — Prometo.
Deixei-os entrar. Senti-me fraco e estúpido, mas não consegui fechar-lhes a porta na cara.
Durante os dias seguintes, a tensão era palpável no ar. O Rui tentava ajudar nas tarefas da casa, mas eu evitava-o sempre que podia. A Ana procurava emprego pela internet e fazia o jantar para todos. Às vezes ouvia-os discutir baixinho no quarto de hóspedes. Uma noite apanhei o Rui a chorar na varanda.
— O que foi agora? — perguntei, sem conseguir esconder o tom amargo.
Ele limpou as lágrimas à manga do casaco.
— Sinto tanto ter-te feito aquilo… — murmurou. — Eu estava desesperado, Miguel. Devia ter-te contado tudo em vez de fugir.
— E agora? Achas que basta pedires desculpa e tudo fica bem?
Ele abanou a cabeça.
— Não espero isso… Só queria uma oportunidade para te mostrar que mudei.
Ficámos em silêncio durante minutos intermináveis. O vento frio da noite fazia-me tremer, mas não era só do frio.
No dia seguinte, recebi uma chamada da minha mãe.
— O teu irmão está contigo? — perguntou ela, com aquela voz cansada de quem já chorou demasiado.
— Está — respondi secamente.
— Ele precisa de ajuda, Miguel. Não faças como o teu pai… Não deixes que este rancor vos destrua para sempre.
Suspirei. Sempre fui o filho responsável, o que resolvia os problemas dos outros. Mas quem é que resolvia os meus?
Naquela noite, durante o jantar, a Ana contou-nos que tinha conseguido uma entrevista numa pastelaria em Arroios.
— Se tudo correr bem, podemos sair daqui em breve — disse ela, tentando sorrir.
O Rui ficou calado. Notei-lhe os olhos inchados e as mãos inquietas.
Depois do jantar, ele pediu-me para falar a sós.
— Miguel… Preciso de te contar uma coisa — começou ele, hesitante. — O dinheiro… Eu não fiquei com tudo para mim. Meti-me com gente errada. Devia-te ter contado logo na altura… Mas tive medo.
Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim.
— E agora? Ainda lhes deves dinheiro?
Ele abanou a cabeça.
— Não… A Ana ajudou-me a pagar tudo quando nos casámos. Mas perdi tudo: amigos, trabalho… Só me restas tu.
Fiquei sem palavras. Pela primeira vez vi o Rui como um homem quebrado e não só como o miúdo irresponsável que me traiu.
Os dias passaram devagar. A Ana conseguiu o emprego e começou a trazer pão fresco todas as manhãs. O Rui arranjou trabalho numa oficina perto do bairro. A casa encheu-se de cheiros novos e risos tímidos ao pequeno-almoço.
Mas nem tudo era fácil. O meu pai recusava-se a falar comigo desde que soube que acolhi o Rui. “Estás a ser feito parvo outra vez”, dizia ele à minha mãe ao telefone. Os meus tios criticavam-me nas costas: “O Miguel nunca aprende”.
Uma noite, depois de um jantar animado, ouvi uma discussão acesa no quarto deles.
— Não posso continuar assim! — gritava a Ana. — Preciso de estabilidade! Não posso viver sempre à espera do próximo desastre!
O Rui chorava baixinho: — Eu vou conseguir… Só preciso de tempo…
No dia seguinte encontrei a Ana na cozinha com os olhos inchados.
— Desculpa pelo barulho — murmurou ela. — Às vezes sinto que estou presa num ciclo sem fim…
Sentei-me ao lado dela e ficámos em silêncio durante um longo tempo.
— Achas que as pessoas mudam mesmo? — perguntei-lhe finalmente.
Ela olhou para mim com tristeza nos olhos.
— Quero acreditar que sim… Mas às vezes parece impossível.
O tempo foi passando e comecei a reparar em pequenas mudanças no Rui: chegava sempre cedo do trabalho, ajudava nas despesas da casa, até começou a falar em voltar a estudar à noite para tirar um curso técnico.
Um domingo à tarde fomos todos visitar a minha mãe em Almada. Ela chorou ao ver-nos juntos à mesa outra vez. O meu pai ficou no quarto, recusando-se a juntar-se a nós.
No regresso a Lisboa, o Rui virou-se para mim no carro:
— Obrigado por me dares esta segunda oportunidade… Sei que não merecia.
Olhei para ele e vi o miúdo assustado de outros tempos misturado com um homem cansado mas determinado a mudar.
Hoje olho para trás e pergunto-me: fiz bem em abrir-lhe a porta? Até onde devemos ir por quem amamos? Será possível perdoar verdadeiramente quem nos traiu?
E vocês? Já tiveram de escolher entre proteger-se ou dar uma segunda oportunidade? Até onde vão os vossos limites?