O Meu Irmão Ficou Com o Meu Apartamento e Acha Que Está Certo

— Não podes simplesmente ficar aqui, Miguel! — gritei, a voz embargada, enquanto ele largava a mochila no chão da sala. O cheiro a café velho e o eco dos nossos passos misturavam-se com a tensão que pairava no ar. A minha mãe, sentada à mesa da cozinha, fingia não ouvir, os olhos fixos numa chávena vazia.

Miguel olhou-me com aquele ar de superioridade que sempre me irritou. — O apartamento é da mãe, e ela disse que eu podia ficar. Qual é o teu problema?

O meu problema? O meu problema era tudo aquilo. Era o facto de, depois da morte do meu pai, a minha mãe ter casado com o António — um homem que nunca me aceitou como filho — e ter tido o Miguel. Era o facto de eu ter crescido naquele apartamento em Benfica, de cada canto ter uma memória minha e do meu pai, e agora ver tudo ser tomado por alguém que só apareceu na minha vida quando eu já era adolescente.

Lembro-me do dia em que o meu pai morreu. Tinha 17 anos e o mundo parecia ter acabado. A minha mãe chorava baixinho no quarto, e eu sentia-me sozinho no corredor frio. O apartamento era o meu refúgio, o último pedaço de normalidade que me restava. Quando ela casou de novo, senti-me traído, mas tentei aceitar. Afinal, todos merecem uma segunda oportunidade. Só não sabia que essa segunda oportunidade ia significar perder tudo o que era meu.

Miguel cresceu mimado. O António fazia-lhe todas as vontades, e a minha mãe, talvez por culpa ou por amor, nunca lhe dizia que não. Eu fui ficando para segundo plano. Quando fiz 23 anos e terminei a faculdade, comecei a trabalhar e a ajudar nas despesas do apartamento. Sempre achei que, um dia, aquele espaço seria oficialmente meu. Era o que o meu pai queria — deixou isso escrito num papel guardado na gaveta da cómoda, mas nunca chegou a formalizar nada.

— Mãe, diz-lhe tu — pedi, quase suplicando. — O apartamento era para ser meu. O pai queria isso.

Ela levantou os olhos, cansados, e suspirou. — Oh, João, não compliques. O Miguel está numa fase difícil, precisa de um sítio para ficar. Tu já tens trabalho, já és independente. Não podes ajudar o teu irmão?

Independente? Mal conseguia pagar o quarto minúsculo que arrendei em Odivelas. O apartamento era o meu porto seguro, o lugar onde podia ser eu mesmo. E agora, era como se tudo me fosse arrancado sem qualquer remorso.

As discussões tornaram-se rotina. Miguel trazia amigos, fazia festas, deixava tudo desarrumado. Eu tentava impor limites, mas a minha mãe defendia-o sempre. — Ele é mais novo, tem de se divertir. Tu também já foste assim — dizia ela, esquecendo-se de que eu nunca tive esse privilégio.

Certa noite, cheguei a casa e encontrei a porta trancada. Bati, liguei à minha mãe, mas ninguém atendeu. Dormi no carro, embrulhado no casaco, a sentir-me mais estrangeiro do que nunca na minha própria vida. No dia seguinte, a minha mãe pediu desculpa, mas Miguel nem sequer olhou para mim.

O tempo foi passando e fui-me afastando. Os jantares de família tornaram-se insuportáveis. O António fazia comentários passivo-agressivos sobre como eu devia ser mais compreensivo com o Miguel. A minha mãe tentava apaziguar, mas acabava sempre por escolher o lado deles.

Uma tarde, decidi confrontar a minha mãe. — Achas justo o que está a acontecer? O pai queria que o apartamento fosse meu. Eu ajudei-te a pagar as contas durante anos. O Miguel nunca fez nada.

Ela chorou. Disse que não sabia o que fazer, que não queria magoar nenhum dos filhos. Mas a verdade é que já tinha escolhido. E eu percebi que, para ela, o Miguel era mais filho do que eu.

Comecei a procurar advogados, a tentar perceber se havia alguma forma legal de reverter a situação. Mas sem testamento formal, sem documentos oficiais, tudo era complicado. O António ameaçou cortar relações se eu continuasse com aquilo. A minha mãe pediu-me para não destruir a família.

Destruir a família? Senti-me esmagado pelo peso da culpa. Passei noites em claro, a pensar no meu pai, no que ele diria se visse o que estava a acontecer. Lembrei-me das tardes em que jogávamos à bola no corredor, das histórias que ele me contava antes de dormir. Tudo isso parecia tão distante agora.

Um dia, ao voltar ao apartamento para buscar umas caixas, encontrei o Miguel sentado no sofá, a jogar Playstation. — Ainda aqui andas? — perguntou, sem tirar os olhos do ecrã.

— Vim buscar as minhas coisas — respondi, tentando controlar a raiva.

Ele encolheu os ombros. — Olha, João, a vida é assim. Habituaste-te a ser o preferido do pai, agora é a minha vez.

Aquelas palavras doeram mais do que qualquer coisa que ele pudesse ter feito. Saí dali com as caixas na mão e um buraco no peito.

Os meses passaram. Fui-me afastando cada vez mais. A minha mãe ligava de vez em quando, mas as conversas eram superficiais. Senti que perdi não só o apartamento, mas também a família. O António e o Miguel venceram. E eu fiquei sozinho.

Hoje, olho para trás e pergunto-me se devia ter lutado mais. Se devia ter perdoado, ou se devia ter cortado relações mais cedo. Sinto falta do meu pai, da sensação de pertença, do lar que perdi.

Será que algum dia vou conseguir reconstruir a minha vida sem este peso? O que é que realmente faz uma família: o sangue, a justiça ou o amor? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.