O Médico Que Cobrou Antes de Tratar: Uma Noite de Arrependimento

— Não posso tratar a sua filha sem o pagamento adiantado, Dona Teresa. — As palavras saíram-me da boca mais frias do que eu pretendia, mas naquele momento, depois de doze horas de urgências, sentia-me exausto e sem paciência para mais discussões.

Dona Teresa olhou-me com olhos marejados, segurando a mão da pequena Inês, que tremia de febre alta. O marido dela, o Sr. Manuel, remexia-se nervoso junto à porta do consultório, tirando e colocando o boné nas mãos suadas.

— Doutor Rui, por favor… — suplicou ela, a voz embargada. — Não temos dinheiro agora. O meu marido só recebe daqui a dois dias. A Inês está tão mal…

Senti um aperto no peito, mas lembrei-me das contas acumuladas na minha própria casa: a renda atrasada, os livros escolares dos meus filhos, a prestação do carro. O hospital privado onde trabalhava não era caridade, e eu já tinha tido problemas por atender pacientes sem garantias de pagamento.

— Compreendo a vossa situação, mas são as regras da clínica — respondi, desviando o olhar para o computador. — Se não puderem pagar hoje, terão de procurar o hospital público.

O Sr. Manuel explodiu:

— Mas a fila nas urgências do São João demora horas! A menina não aguenta!

O relógio marcava quase meia-noite. Lá fora, a chuva batia nos vidros como se quisesse entrar e lavar toda aquela tensão. Senti-me dividido entre o dever e a sobrevivência.

— Lamento muito — disse, tentando soar firme. — Não posso abrir exceções.

Vi-os sair cabisbaixos, Dona Teresa com Inês ao colo, Manuel a murmurar impropérios contra mim e contra o sistema. Fechei a porta e encostei a testa à madeira fria. O silêncio do consultório era ensurdecedor.

No caminho para casa, os faróis dos carros confundiam-se com as lágrimas que me teimavam em cair. Lembrei-me do meu pai, também ele médico de aldeia, que nunca recusava ninguém. “A medicina é um sacerdócio”, dizia-me sempre. Mas os tempos mudaram, não foi?

Cheguei a casa já depois da uma da manhã. A minha mulher, Sofia, esperava-me na sala com um chá quente e um olhar preocupado.

— Estás bem? — perguntou ela.

Sentei-me no sofá e contei-lhe tudo. Ela ouviu em silêncio, depois pousou a mão na minha perna.

— Fizeste o que achaste certo… mas será que foi mesmo?

Não dormi nessa noite. A imagem da pequena Inês não me saía da cabeça: os olhos febris, o choro abafado no ombro da mãe. E se ela piorasse? E se…?

Na manhã seguinte, antes de sair para o hospital público onde também dava consultas, recebi uma chamada do meu colega Dr. Álvaro.

— Rui… conheces uma menina chamada Inês Silva? Entrou esta madrugada nas urgências em estado grave. Pneumonia avançada. Está nos cuidados intensivos pediátricos.

O chão fugiu-me dos pés. Sentei-me na cama, incapaz de responder.

— Os pais disseram que tentaram ser atendidos na tua clínica — continuou ele, hesitante. — Estão desesperados…

Desliguei sem saber o que dizer. Passei o dia como um fantasma, errando pelos corredores do hospital sem conseguir concentrar-me nos meus pacientes. Cada criança que via era um lembrete doloroso do meu erro.

Ao final da tarde, decidi ir ao quarto onde Inês estava internada. Bati à porta devagarinho e entrei. Dona Teresa estava sentada ao lado da cama, olhos vermelhos de tanto chorar. O Sr. Manuel olhou para mim com uma mistura de raiva e desespero.

— O que faz aqui? — perguntou ele entre dentes.

Aproximei-me devagar.

— Vim pedir desculpa… Sei que falhei convosco ontem à noite. Não há desculpa possível para o que fiz.

Dona Teresa levantou-se e abraçou-se à filha.

— Só queremos que ela fique bem…

Fiquei ali parado, sentindo-me menor do que nunca. Ofereci-me para ajudar no tratamento de Inês, mas percebi que já não era bem-vindo naquele quarto.

Nos dias seguintes, acompanhei à distância o caso dela. Felizmente, Inês era forte e começou a recuperar devagarinho. Mas dentro de mim crescia um sentimento de culpa que me consumia por dentro.

Na semana seguinte, fui chamado à direção da clínica privada. Alguém tinha feito uma reclamação formal sobre a minha recusa em atender uma criança em situação urgente sem pagamento prévio.

O diretor olhou-me com ar severo:

— Dr. Rui, compreendo as dificuldades financeiras dos nossos profissionais, mas há limites éticos que não podem ser ultrapassados. A reputação da clínica está em risco.

Fui suspenso durante um mês sem vencimento. A notícia espalhou-se rapidamente entre colegas e amigos. Senti vergonha de sair à rua; até os meus filhos ouviram comentários na escola.

Sofia tentou animar-me:

— Talvez isto seja uma oportunidade para repensares as tuas prioridades…

Passei semanas a refletir sobre tudo: as pressões do sistema de saúde privado em Portugal, as dificuldades das famílias pobres, as minhas próprias escolhas enquanto médico e ser humano.

Quando finalmente regressei ao trabalho no hospital público, decidi mudar a minha abordagem. Passei a dedicar mais tempo aos casos sociais, envolvi-me em associações de apoio a famílias carenciadas e comecei até a dar consultas gratuitas em centros comunitários nos bairros mais desfavorecidos do Porto.

Um dia reencontrei Dona Teresa e Inês numa dessas consultas solidárias. A menina correu para mim e abraçou-me sem rancor; Dona Teresa sorriu timidamente.

— Obrigada por cuidar agora dos outros meninos — disse ela baixinho.

Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto ali mesmo, diante de todos.

Hoje continuo a lutar com as minhas escolhas e os fantasmas daquela noite fatídica. Sei que nunca poderei apagar o erro cometido com Inês e a sua família, mas tento todos os dias ser um médico melhor — e um homem mais digno do legado do meu pai.

Pergunto-me muitas vezes: quantos outros Ruis existem por aí, presos entre as exigências do sistema e a voz da consciência? Será possível ser justo num mundo tão desigual? E vocês… o que teriam feito no meu lugar?