O Jogo Que Nos Despedaçou
— Não me mintas, Miguel. Diz-me a verdade! — A voz da Vitória ecoava pelo corredor estreito do meu apartamento alugado em Arroios. O cheiro a café queimado misturava-se com o perfume doce dela, tornando o ar quase irrespirável.
Eu olhava para as minhas mãos trémulas, incapaz de encará-la. O telemóvel vibrava no bolso — provavelmente a minha mãe, outra vez, a perguntar quando voltava para casa, para o nosso casarão em Cascais. Mas eu não queria pensar nisso agora. Não queria pensar em nada que me lembrasse quem eu realmente era.
Conheci a Vitória numa noite de novembro, através de uma aplicação de encontros. Ela tinha um sorriso tímido e olhos castanhos que pareciam ler-me a alma. Falámos sobre livros, sobre o caos do trânsito lisboeta, sobre sonhos de infância e desilusões adultas. Ela contou-me como trabalhava num call center para pagar a renda e ajudar a mãe, que sofria de depressão desde que o pai as abandonou. Eu disse-lhe que era freelancer — meio verdade, meio mentira — e que vivia “apertado”, como quase toda a gente da nossa geração.
A verdade? Eu era filho único de um empresário conhecido, dono de metade dos restaurantes da Baixa e de uns quantos hotéis pelo país fora. Cresci rodeado de luxo, mas sempre me senti deslocado naquele mundo de aparências e sorrisos falsos. Quando conheci a Vitória, temi que o dinheiro fosse uma barreira entre nós. Queria saber se ela gostava de mim pelo que eu era, não pelo que eu tinha.
Por isso, inventei uma vida mais simples. Disse-lhe que dividia casa com dois amigos (quando na verdade alugava aquele T1 só para manter a farsa), que andava sempre a contar os trocos no supermercado, que nunca tinha ido ao estrangeiro porque “não dava para tudo”. Ela acreditou em mim. E eu apaixonei-me por ela — pela sua força, pela sua honestidade brutal, pela forma como me fazia rir mesmo nos dias mais cinzentos.
Durante meses, vivi entre dois mundos. Aos fins-de-semana, inventava desculpas para não ir aos jantares de família: “tenho trabalho”, “estou doente”, “tenho um projeto urgente”. A minha mãe desconfiava — sempre desconfiou — mas nunca me confrontou diretamente. O meu pai limitava-se a resmungar sobre a minha falta de ambição e sobre como estava a desperdiçar o meu potencial.
Com a Vitória, tudo parecia mais leve. Íamos ao cinema do bairro nas noites de terça-feira (bilhete mais barato), partilhávamos bifanas na tasca do Sr. Américo e sonhávamos com viagens improváveis à Grécia ou ao Japão. Ela falava-me dos seus medos: de nunca sair daquele ciclo de precariedade, de não conseguir cuidar da mãe, de ser sempre “a rapariga pobre”.
Eu queria dizer-lhe que podia ajudá-la. Que podia pagar-lhe uma viagem, arranjar-lhe um emprego melhor, até tratar da mãe dela numa clínica privada. Mas cada vez que tentava abrir a boca, sentia-me um impostor. E então calava-me.
A mentira começou a pesar quando ela quis apresentar-me à mãe. Fui lá jantar numa sexta-feira chuvosa. A casa era pequena e modesta, mas cheia de fotografias antigas e livros gastos. A mãe da Vitória olhou-me com desconfiança — talvez pressentisse algo errado — mas foi cordial.
Depois desse jantar, a Vitória começou a fazer perguntas: “Porque é que nunca falas da tua família? Porque é que nunca vamos à tua casa?” Eu inventava desculpas atrás de desculpas: “Os meus pais vivem longe”, “Não nos damos muito bem”, “A casa está em obras”.
Até ao dia em que tudo desabou.
Foi num sábado à tarde. Estávamos sentados num banco do Jardim da Estrela quando o meu primo João passou por nós. Reconheceu-me imediatamente:
— Miguel! Então tu aqui? A tua mãe anda farta de te procurar! — disse ele, sorrindo para mim e depois olhando para a Vitória com curiosidade.
A Vitória ficou pálida.
— Quem é este?
— É… é o meu primo — balbuciei.
O João não percebeu o embaraço e continuou:
— Olha lá, vais ao aniversário do tio António? Diz à tua namorada para ir também! Aquilo vai ser no hotel novo do teu pai em Cascais!
O silêncio caiu entre nós como uma sentença. O João despediu-se e foi embora, deixando-nos ali, congelados.
A Vitória levantou-se devagar.
— Hotel do teu pai? Cascais? Miguel… quem és tu afinal?
Tentei explicar-me ali mesmo, mas as palavras saíam aos tropeções. Ela afastou-se sem olhar para trás.
Passei os dias seguintes num torpor. Tentei ligar-lhe dezenas de vezes; ela não atendeu nenhuma. Enviei mensagens longas, confissões desesperadas. Nada.
A minha mãe apareceu no apartamento sem avisar:
— Miguel, o que se passa contigo? Andas desaparecido há meses! O teu pai está furioso! — disse ela, olhando em volta com desdém para o meu sofá gasto e as paredes descascadas.
— Mãe… eu só queria ser normal — murmurei.
Ela suspirou e sentou-se ao meu lado.
— Ninguém é normal, filho. Mas fugir não resolve nada.
Na semana seguinte, bati à porta da Vitória. Ela abriu-a devagar; os olhos vermelhos denunciavam noites mal dormidas.
— Só quero ouvir-te explicar — disse ela, seca.
Contei-lhe tudo: sobre a minha família, sobre o dinheiro, sobre o medo de não saber se ela gostava realmente de mim ou apenas da ideia do que eu podia oferecer.
Ela ouviu-me em silêncio. Quando terminei, respirou fundo:
— Sabes qual foi a pior parte? Não foi saber que tens dinheiro. Foi perceber que não confiaste em mim o suficiente para seres verdadeiro desde o início. Eu nunca te pedi nada além da verdade.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante semanas. Tentei reconquistar-lhe a confiança — flores à porta, cartas escritas à mão, promessas de mudança — mas nada resultou.
O tempo passou. Voltei para casa dos meus pais por uns tempos; tentei retomar a vida antiga, mas tudo me parecia vazio e sem sentido. Os jantares luxuosos soavam falsos; as conversas sobre negócios aborreciam-me até à exaustão.
A Vitória seguiu com a vida dela. Soube por amigos comuns que arranjou outro emprego e que estava melhor com a mãe. Nunca mais falámos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se tivesse tido coragem de ser honesto desde o início? Quantas vezes deixamos o medo comandar as nossas escolhas e acabamos por perder aquilo que mais queremos?
E vocês? Já mentiram por medo de perder alguém? Valeu a pena?