O Espelho Partido: Lições de Respeito no Liceu de Setúbal

— Outra vez? — sussurrei para mim mesmo, sentindo o cheiro forte a detergente misturado com o perfume barato de batom. O espelho da casa de banho dos rapazes estava coberto de marcas vermelhas, corações desenhados à pressa e frases tolas: “A Marta é gira”, “O prof. Rui é careca”. Mas o que mais me doía era o sorriso trocista desenhado mesmo ao centro, como se zombasse da minha impotência.

Sou o António, 54 anos, há dezassete sou funcionário de limpeza no Liceu D. João II, em Setúbal. Não foi o emprego dos meus sonhos, mas foi o que consegui depois de a fábrica onde trabalhei fechar portas. A minha mulher, a Lurdes, diz sempre: “Antes isto do que nada, António.” Mas há dias em que o “nada” parece mais leve do que este fardo.

Naquela manhã, enquanto esfregava os espelhos, ouvi risos abafados do outro lado da porta. Reconheci logo: eram o Tiago e o Diogo, dois miúdos do 11º ano, sempre juntos, sempre a desafiar limites. A porta abriu-se com estrondo.

— Olha o senhor António! — gritou o Tiago, piscando o olho ao amigo. — Precisa de ajuda com os batons?

O Diogo riu-se alto, atirando-me um tubo de batom barato para os pés.

— Isto é para si, pode ficar com ele! — disse ele, antes de saírem a correr.

Fiquei ali parado, com as mãos a tremer. Não era só raiva; era vergonha. Vergonha por não conseguir impor respeito, vergonha por ser alvo de chacota. Peguei no batom e atirei-o para o lixo.

Ao fim do dia, cheguei a casa cansado. A Lurdes estava na cozinha, a preparar sopa.

— Outra vez com essa cara? — perguntou ela, sem me olhar nos olhos.

— São os miúdos… — comecei eu.

— Deixa-os estar. Faz o teu trabalho e não te metas em confusões. — O tom dela era sempre prático, mas eu sentia-me cada vez mais sozinho.

Naquela noite quase não dormi. A imagem do espelho sujo perseguia-me. Lembrei-me do meu filho, o João, que já não me fala há meses desde que decidiu ir viver com a mãe para Lisboa. “Não quero ser como tu”, disse-me ele uma vez. Doeu mais do que qualquer batom no espelho.

No dia seguinte, decidi agir. Esperei até ao intervalo grande. Quando ouvi os risos no corredor, entrei na casa de banho com um balde e uma esponja.

— Vejam bem como se limpa um espelho! — disse alto, chamando a atenção dos rapazes.

Peguei na esponja suja da sanita e esfreguei-a no espelho.

— É assim que vocês querem ver-se? É isto que querem mostrar aos outros?

O silêncio caiu pesado. Alguns riram-se nervosamente; outros desviaram o olhar. O Tiago ficou vermelho.

— Isso é nojento! — gritou ele.

— Pois é — respondi eu. — Mas foi assim que vocês me obrigaram a limpar ontem.

Saí dali sem olhar para trás. O coração batia-me descompassado. Senti uma estranha satisfação misturada com medo: medo das consequências.

No dia seguinte fui chamado à direção. A diretora, Dona Teresa, olhou-me com ar severo.

— António, recebi queixas dos pais sobre um incidente na casa de banho. Pode explicar?

Contei-lhe tudo. Ela suspirou.

— Compreendo o seu desespero, mas não pode agir assim. Os pais ameaçam apresentar queixa à Câmara…

Fui suspenso três dias sem vencimento. Quando cheguei a casa e contei à Lurdes, ela ficou em silêncio durante minutos intermináveis.

— E agora? Como vamos pagar a renda?

Senti-me esmagado pelo peso da culpa. Passei os dias seguintes fechado em casa, ouvindo os vizinhos a discutir no prédio e as notícias na televisão sobre jovens rebeldes e professores agredidos.

No quarto dia voltei ao liceu. Os miúdos já tinham arranjado outra vítima: agora era a professora de Inglês, Dona Graça, alvo de piadas cruéis nas redes sociais da escola. Senti uma raiva impotente crescer dentro de mim.

No final do turno encontrei o Tiago sozinho no corredor.

— Senhor António… — murmurou ele, sem me encarar. — Desculpe lá aquilo…

Fiquei sem palavras. Vi nos olhos dele um medo genuíno misturado com vergonha.

— O respeito não se pede — disse-lhe eu baixinho. — Conquista-se todos os dias.

Ele assentiu e afastou-se apressado.

Em casa, sentei-me à mesa com a Lurdes e olhei para as mãos calejadas.

— Achas que fiz bem? — perguntei-lhe finalmente.

Ela encolheu os ombros.

— Fizeste o que achaste certo. Mas às vezes o mundo não quer saber do certo ou errado…

À noite liguei ao João. Atendeu ao fim de vários toques.

— Pai? Está tudo bem?

— Não sei… Só queria ouvir-te — respondi eu, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Houve um silêncio longo do outro lado.

— Eu também tenho saudades tuas — disse ele finalmente.

Desliguei com o coração apertado mas um pouco mais leve.

Agora olho-me ao espelho todas as manhãs antes de sair para o trabalho e pergunto-me: será que algum dia vamos aprender a respeitar quem limpa os nossos erros? Ou será que continuamos todos a esconder-nos atrás dos nossos próprios espelhos partidos?