O Dilema de Dona Amélia: Entre o Amor e a Culpa

— Não percebo, Amélia. Porque é que não pegas no Zachary ao colo como fazias com a Avery? — a voz do meu marido, Joaquim, ecoou pela cozinha, carregada de uma preocupação que me feriu mais do que eu queria admitir.

Fiquei parada, com as mãos ainda molhadas do detergente, olhando pela janela para o jardim onde Avery corria atrás das borboletas. Zachary, mais pequeno, tropeçava atrás dela, mas sem a mesma leveza. Senti um aperto no peito. Não era justo. Não era justo para ele, nem para mim. Mas como explicar aquilo que nem eu compreendia?

Avery nasceu numa noite de tempestade, há oito anos. Lembro-me de cada detalhe: o cheiro do hospital, o choro dela, o olhar da minha filha, Sofia, exausta mas feliz. Quando peguei Avery nos braços pela primeira vez, senti uma ligação imediata, quase mágica. Era como se ela tivesse vindo para preencher um vazio que eu nem sabia que existia. Desde então, fui a avó presente: levava-a ao parque, lia-lhe histórias, fazia bolos só para ela. Sofia dizia sempre: “Mãe, tu estragas essa miúda!” E eu ria-me, porque era verdade.

Quando Zachary nasceu, dois anos atrás, tudo foi diferente. Sofia estava mais cansada, o casamento com o Rui já não era o mesmo. O parto foi difícil e Zachary chorava muito. Lembro-me de olhar para ele e não sentir aquele calor imediato no peito. Era um bebé bonito, saudável, mas algo em mim não se mexeu. Senti-me horrível por isso.

— Amélia, estás a ouvir-me? — Joaquim insistiu.

— Estou… Estou sim — respondi, limpando as mãos ao avental. — Só estava a pensar.

Ele aproximou-se e pousou uma mão no meu ombro.

— Não podes continuar assim. O miúdo sente.

Afastei-me dele, irritada com a sua insistência e ainda mais comigo própria. Sabia que ele tinha razão. Zachary olhava para mim com aqueles olhos grandes e castanhos — os olhos do Rui — e parecia sempre à espera de algo que eu não sabia dar-lhe.

Naquela noite, depois do jantar, sentei-me sozinha na sala. A casa estava silenciosa; Joaquim lia no quarto. Peguei numa fotografia antiga: eu e Sofia no jardim da casa dos meus pais, ela com cinco anos, a rir-se enquanto eu lhe fazia cócegas. Lembrei-me de como sempre tive medo de repetir os erros da minha mãe — distante, fria, sempre mais próxima do meu irmão do que de mim.

O telefone tocou e era Sofia.

— Mãe? Preciso de falar contigo.

A voz dela estava tensa. Senti um arrepio.

— Diz filha.

— O Rui quer separar-se. Diz que já não aguenta esta vida… E eu… Eu não sei o que fazer.

Fiquei sem palavras. Sofia sempre fora forte, mas agora soava tão frágil como nunca antes.

— Vens cá amanhã? — perguntei.

— Vou tentar… Mas preciso mesmo de ti agora.

Na manhã seguinte, fui até à casa deles. Avery abriu-me a porta com um sorriso rasgado.

— Avó! Vens brincar comigo?

Zachary veio atrás dela, tropeçando nos próprios pés. Sorriu-me timidamente e estendeu os braços. Hesitei por um segundo — aquele segundo maldito — antes de me baixar para o abraçar. Ele cheirava a leite e bolachas e encostou a cabeça ao meu ombro. Senti uma pontada de culpa tão forte que quase me fez chorar ali mesmo.

Sofia estava sentada à mesa da cozinha, olhos vermelhos.

— Mãe… Eu não sei se consigo continuar assim. O Rui está cada vez mais ausente… E eu sinto-me tão sozinha.

Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe as mãos.

— Filha… Eu estou aqui. Sempre estive.

Ela olhou-me nos olhos.

— Estás? Às vezes parece que só tens olhos para a Avery… Até o Zachary sente isso.

As palavras dela foram como facas. Tentei justificar-me:

— Não é verdade… Eu amo os dois…

Mas a minha voz soou fraca até aos meus próprios ouvidos.

— Mãe… Eu sei que amas a Avery de uma forma especial. Mas o Zachary precisa tanto de ti agora…

Fiquei calada. Não sabia o que dizer. Como explicar aquele vazio? Como admitir que tinha medo de não ser capaz de amar o meu neto como ele merecia?

Os dias passaram e comecei a esforçar-me mais com Zachary. Levava-o ao parque, tentava brincar com ele como fazia com Avery. Mas tudo parecia forçado, artificial. Ele ria-se às vezes, mas havia sempre um muro invisível entre nós.

Uma tarde, enquanto Sofia chorava no quarto e Avery via desenhos animados na sala, sentei-me no chão com Zachary e tentei construir uma torre de blocos coloridos. Ele olhou para mim e disse:

— Avó… gostas de mim?

O mundo parou naquele instante. Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto sem conseguir controlar.

— Claro que gosto… Gosto muito de ti…

Mas será que gostava mesmo? Ou estava apenas a tentar convencer-me disso?

Nessa noite, em casa, desabafei com Joaquim:

— Sinto-me uma fraude… Como posso ser avó assim? Porque é que não consigo sentir o mesmo pelo Zachary?

Ele abraçou-me em silêncio durante muito tempo.

— Às vezes o coração precisa de tempo… Não te culpes tanto.

Mas eu culpava-me todos os dias.

O tempo foi passando e as coisas em casa da Sofia pioraram. O Rui acabou por sair de casa e Sofia ficou sozinha com os dois filhos. Passei a ir lá todos os dias para ajudar — levava Avery à escola, ficava com Zachary enquanto Sofia procurava trabalho.

Foi num desses dias que tudo mudou.

Zachary estava doente — febre alta, olhos brilhantes de cansaço. Passei horas ao lado dele na cama pequena do quarto dele, limpando-lhe o suor da testa e contando-lhe histórias baixinho para o acalmar. Pela primeira vez senti medo — medo real de perder aquele menino por quem tanto me esforçava para sentir algo mais forte.

Quando finalmente adormeceu nos meus braços, senti um calor estranho no peito — uma ternura nova, diferente daquela que sentia por Avery mas igualmente poderosa. Percebi então que cada amor é diferente; não se mede nem se compara.

No dia seguinte Zachary acordou melhor e sorriu-me com uma confiança nova nos olhos.

— Avó… ficas comigo?

Sorri-lhe de volta e disse:

— Fico sempre contigo, meu amor.

Hoje olho para trás e vejo como fui injusta comigo própria e com ele. O amor não nasce sempre à primeira vista; às vezes cresce devagarinho, como uma semente teimosa num solo difícil.

Pergunto-me muitas vezes: quantas avós sentem isto em silêncio? Quantas mães ou pais têm medo de admitir que o amor nem sempre é igual para todos os filhos ou netos? Será pecado sentir assim? Ou será apenas humano?