O Diário Perdido: Segredos à Vista de Todos
— Não podes estar a falar a sério, mãe! — gritei, sentindo o peito apertar como se alguém me tivesse roubado o ar. O olhar da minha mãe, Maria do Carmo, era duro, quase de pedra. — Leonor, não sei o que queres que eu faça. O que está feito, está feito.
Mas eu sabia que nada estava feito. Nada estava resolvido. O meu diário tinha desaparecido há uma semana. Um caderno azul, com as folhas já gastas de tanto escrever. Era o meu refúgio desde os doze anos. Ali escrevia tudo: as minhas dúvidas sobre o futuro, as discussões com a minha irmã mais velha, Inês, os meus medos de não ser suficiente para ninguém, os meus sentimentos por Rafael, o vizinho do terceiro andar. Até os pensamentos mais sombrios e as mágoas que nunca tive coragem de partilhar com ninguém.
Naquela manhã de segunda-feira, acordei com o telemóvel a vibrar sem parar. Mensagens no WhatsApp, notificações no Instagram. “Leonor, és tu?” “Isto é verdade?” “Nunca pensei que fosses assim…” O coração disparou. Abri o Instagram e vi: uma página anónima publicava excertos do meu diário. Frases soltas, mas tão íntimas que só podiam ser minhas. “Sinto-me invisível em casa.” “Às vezes desejo desaparecer.” “A Inês nunca vai perceber o quanto me magoa.” E mais, muito mais.
Corri para a cozinha, onde a minha mãe preparava café. — Mãe, alguém está a publicar coisas do meu diário! — Ela olhou-me como se eu estivesse a exagerar. — Deves ter deixado isso em algum lado. Não andes sempre com a cabeça na lua.
Mas eu sabia que não era distração. Alguém tinha encontrado o meu diário e estava a usar os meus segredos contra mim. Senti-me nua perante toda a escola, toda a família, todo o bairro.
No liceu D. João II, os olhares seguiam-me pelos corredores. Sussurros atrás das costas. Até os professores pareciam saber. A Inês evitava-me desde que um dos excertos falava dela: “A Inês só pensa nela própria.” Quando tentei falar com ela, virou-me as costas.
— Não quero saber dos teus dramas — disse ela, fria como gelo. — Se calhar devias pensar antes de escrever tanta porcaria.
O Rafael também deixou de me cumprimentar no elevador. Senti-me completamente sozinha.
À noite, fechei-me no quarto e chorei até não ter mais lágrimas. O meu pai, António, tentou bater à porta.
— Leonor, abre lá isso. Não podes ficar aí fechada para sempre.
Mas eu não queria ver ninguém. Nem sequer sabia em quem confiar.
Os dias seguintes foram um inferno. Cada publicação nova era um golpe. Comecei a desconfiar de toda a gente: teria sido a Inês? Alguma amiga invejosa? Até pensei na minha mãe, que sempre dizia que eu devia ser mais aberta com ela e menos com “esses papéis”.
Uma noite ouvi vozes baixas na sala. Escondi-me atrás da porta e ouvi a minha mãe dizer ao meu pai:
— Ela anda tão estranha… Achas que foi ela própria que publicou aquilo para chamar a atenção?
O meu pai suspirou: — Não sei… Mas temos de fazer alguma coisa. Isto não é normal.
Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo. Como podiam pensar que eu faria isto comigo mesma? No dia seguinte decidi agir.
Fui falar com a Beatriz, a única amiga em quem ainda confiava.
— Bia, preciso da tua ajuda. Alguém está a destruir-me e não sei quem é.
Ela abraçou-me e prometeu ajudar-me a descobrir quem estava por trás da página anónima.
Criámos um perfil falso para tentar falar com o administrador da página. Mandámos mensagens, fizemos perguntas disfarçadas. Nada. Quem quer que fosse era cuidadoso.
Entretanto, em casa, o ambiente piorava de dia para dia. A minha mãe começou a controlar tudo: queria ver o meu telemóvel, perguntava onde ia, com quem falava. O meu pai tentava ser mediador mas só piorava as coisas.
— Maria do Carmo, deixa a miúda respirar! — gritava ele.
— Se ela tivesse sido mais cuidadosa isto não tinha acontecido! — respondia ela.
A Inês continuava fria e distante. Uma noite apanhei-a no meu quarto, mexendo nas minhas gavetas.
— O que estás a fazer? — perguntei, furiosa.
Ela corou e saiu sem dizer nada.
Comecei a desconfiar dela cada vez mais. Uma tarde segui-a até ao café onde costumava ir depois das aulas. Vi-a sentada com o João Pedro, um rapaz do nosso bairro conhecido por ser metediço e adorar mexericos.
Quando me viram aproximar-se, ficaram tensos.
— O que é que vocês estão aqui a fazer? — perguntei.
A Inês levantou-se rapidamente: — Não é da tua conta!
Mas eu sabia que era da minha conta sim.
Nessa noite decidi confrontá-la em casa.
— Foste tu que tiraste o meu diário? Foste tu que começaste isto tudo?
Ela hesitou por um segundo demasiado longo antes de responder:
— Achas mesmo que eu tinha tempo para essas parvoíces?
Mas vi nos olhos dela algo diferente: culpa? Medo?
Os dias passaram e as publicações continuaram. Comecei a sentir-me doente: dores de cabeça constantes, insónias, falta de apetite. A minha mãe levou-me ao médico mas ele disse que era ansiedade.
Uma noite acordei sobressaltada com uma notificação no telemóvel: uma mensagem privada da página anónima.
“Se queres o teu diário de volta, aparece amanhã às 18h no parque junto ao rio. Sozinha.”
O coração quase me saltou do peito. Mostrei a mensagem à Beatriz e ela insistiu em ir comigo mas recusei: tinha de enfrentar isto sozinha.
No dia seguinte fui ao parque à hora marcada. O sol já se punha quando vi uma figura aproximar-se: era o João Pedro.
— Então eras tu… — sussurrei.
Ele sorriu com arrogância: — Não exatamente. Mas digamos que tive ajuda…
Atrás dele apareceu… a Inês.
Senti as pernas fraquejarem.
— Porquê? — perguntei à minha irmã, quase sem voz.
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos:
— Estava farta de seres sempre a vítima! Sempre tu no centro das atenções! Nunca percebeste como é difícil ser tua irmã?
O João Pedro interrompeu:
— Foi só uma brincadeira ao início… Mas depois tornou-se divertido ver como toda a gente reagia.
A raiva tomou conta de mim:
— Brincadeira? Arruinaram a minha vida! Roubaram-me tudo!
A Inês chorava agora abertamente:
— Desculpa… Eu só queria que visses como me sinto invisível ao teu lado…
O João Pedro encolheu os ombros:
— Podes ficar com o teu diário — disse, atirando-o para o chão aos meus pés.
Peguei nele como se fosse um tesouro perdido mas senti apenas vazio por dentro.
Voltei para casa sem dizer nada aos meus pais naquela noite. No dia seguinte contei-lhes tudo: sobre o João Pedro, sobre a Inês, sobre como me senti traída por quem devia proteger-me.
A minha mãe chorou e abraçou-nos às duas. O meu pai ficou em silêncio durante muito tempo antes de dizer:
— Às vezes magoamos mais quem está mais perto de nós…
A relação com a Inês nunca voltou a ser igual mas aos poucos fomos reconstruindo alguma confiança. O João Pedro foi suspenso da escola e nunca mais falou comigo.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos segredos cabem num diário antes de se tornarem armas nas mãos erradas? E será que alguma vez podemos perdoar verdadeiramente quem nos traiu assim?