O Dia em que o Mundo Desabou – A Minha História em Lisboa que Mudou Tudo
— Maria, tens de vir ao hospital. O Miguel teve um acidente grave. — A voz da minha sogra, tremida e urgente, ecoou no telefone antes mesmo de eu conseguir perguntar o que se passava. O meu coração disparou, as mãos começaram a tremer e, por um momento, o mundo pareceu parar. Larguei a chávena de café, que se estilhaçou no chão da cozinha, e corri para vestir qualquer coisa. O sol mal tinha nascido sobre Lisboa, mas dentro de mim já era noite.
No táxi, as ruas pareciam desfocar-se à medida que as lágrimas me toldavam a visão. O motorista olhava-me pelo retrovisor, mas não disse nada. Talvez já tivesse visto demasiadas pessoas assim: perdidas entre o medo e a esperança. Quando cheguei ao Hospital de Santa Maria, a minha sogra esperava-me à porta, os olhos vermelhos e as mãos apertadas numa oração silenciosa.
— Ele está na cirurgia — murmurou ela, agarrando-me o braço com força. — Disseram que foi grave…
Sentei-me na sala de espera, rodeada por estranhos que também esperavam notícias dos seus. O relógio marcava cada segundo como uma tortura. A minha cabeça rodopiava com perguntas: Como? Porquê? Onde estava ele? O Miguel era sempre tão cuidadoso…
Horas depois, um médico apareceu. — A cirurgia correu bem, mas ele vai precisar de tempo para recuperar. — Senti um alívio momentâneo, mas logo percebi que algo não batia certo. O médico hesitou antes de continuar: — Há mais uma coisa…
Foi nesse momento que tudo começou a desmoronar.
— Acompanhava o Miguel? — perguntou-me uma enfermeira mais tarde, com um olhar estranho.
— Não… estava sozinho? — perguntei, sentindo um nó no estômago.
Ela desviou o olhar. — Não exatamente…
A minha sogra olhou para mim, confusa. — O que queres dizer?
A enfermeira hesitou antes de responder: — Ele estava acompanhado por uma mulher. Foi ela quem chamou a ambulância.
O chão fugiu-me dos pés. Uma mulher? Quem? Porquê? Senti o olhar da minha sogra cravar-se em mim, cheia de perguntas mudas.
Quando finalmente pude ver o Miguel, ele estava pálido e ligado a máquinas. Peguei-lhe na mão e sussurrei:
— Quem era ela?
Ele virou o rosto para a janela, evitando os meus olhos. — Maria… não é o melhor momento…
— Diz-me agora! — gritei, incapaz de controlar a raiva e o medo.
Ele fechou os olhos e lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. — Chama-se Inês…
O nome soou como uma sentença. Inês? A colega do escritório? Aquela com quem ele dizia trabalhar até tarde?
— Há quanto tempo? — perguntei, a voz quase inaudível.
— Dois anos… — respondeu ele, finalmente olhando para mim.
Dois anos. Dois anos de mentiras, de desculpas esfarrapadas, de jantares cancelados e fins de semana “de trabalho”. Senti-me traída, humilhada, perdida.
A minha sogra chorava baixinho num canto do quarto. — Como pudeste fazer isto à Maria? À nossa família?
O Miguel tentou justificar-se:
— Eu nunca quis magoar ninguém… As coisas simplesmente aconteceram…
Levantei-me de rompante. — As coisas não “acontecem” assim! Tu escolheste! Escolheste mentir-me todos os dias!
Saí do quarto sem olhar para trás. No corredor, encostei-me à parede e deslizei até ao chão. Senti uma mão no meu ombro: era o meu irmão, o Pedro, que tinha acabado de chegar.
— Maria…
— Não consigo respirar… — soluçava eu.
Ele sentou-se ao meu lado e abraçou-me. — Vais conseguir ultrapassar isto. Não estás sozinha.
Mas eu sentia-me sozinha como nunca antes.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções e decisões difíceis. Tive de contar à nossa filha pequena que o pai estava doente e ia ficar algum tempo no hospital. Tive de enfrentar os olhares curiosos dos vizinhos e as perguntas indiscretas das amigas: “Estás bem? Precisas de alguma coisa?” Ninguém sabia da verdade — ainda.
À noite, sozinha na nossa casa em Benfica, abria os armários e via as camisas dele misturadas com as minhas roupas, as fotografias felizes nas prateleiras, os brinquedos da nossa filha espalhados pelo chão. Tudo parecia mentira.
Uma semana depois, recebi uma mensagem da Inês:
“Maria, desculpa incomodar-te. Sei que não tenho esse direito, mas precisava de falar contigo.”
Fiquei horas a olhar para o telemóvel antes de responder:
“Porquê?”
Ela respondeu quase imediatamente:
“Quero pedir-te desculpa. Não sabia que ele ainda estava contigo quando começámos… Só descobri mais tarde e já estava demasiado envolvida.”
Senti raiva, mas também pena dela — e de mim própria. Como é possível duas mulheres viverem na mesma cidade, amarem o mesmo homem e não saberem uma da outra?
Encontrei-me com ela num café discreto em Campo de Ourique. Inês era mais nova do que eu imaginava, com olhos cansados e voz trémula.
— Ele prometeu-te alguma coisa? — perguntei.
Ela abanou a cabeça. — Só dizia que precisava de tempo… Que era complicado… Eu fui ingénua.
Saí daquele encontro ainda mais confusa. O Miguel não era só meu marido; era também pai da nossa filha, genro dedicado aos meus pais idosos, amigo dos nossos amigos em comum. Como podia ter enganado tanta gente durante tanto tempo?
Quando ele finalmente voltou para casa, tentei manter uma aparência normal pela nossa filha. Mas à noite discutíamos baixinho na cozinha:
— Como é que me fizeste isto?
— Maria… eu perdi-me pelo caminho… Não sei explicar.
— E agora? Achas que podemos continuar como se nada fosse?
Ele chorava, pedia perdão todos os dias. Mas cada vez que olhava para ele via a traição estampada no rosto.
A minha mãe insistia para eu perdoar:
— Mariazinha, pensa na tua filha… Não destruas a família por causa de um erro.
Mas o meu pai era mais duro:
— Quem mente assim uma vez mente sempre. Tens de pensar em ti primeiro.
Os amigos dividiam-se entre os que achavam que devia dar-lhe outra oportunidade e os que diziam para seguir em frente.
Durante meses vivi suspensa entre dois mundos: o do passado feliz (ou assim pensava) e o presente doloroso. Fui à psicóloga, chorei sozinha no carro depois do trabalho, escrevi cartas ao Miguel que nunca cheguei a entregar.
Um dia acordei e percebi que não podia continuar assim. Chamei-o à sala:
— Miguel, precisamos decidir o nosso futuro. Não posso viver nesta dúvida constante.
Ele olhou para mim com olhos vermelhos:
— Amo-te, Maria. Quero reconstruir tudo contigo.
Mas eu já não sabia se era possível reconstruir algo sobre ruínas tão profundas.
Acabámos por nos separar alguns meses depois. Foi doloroso explicar à nossa filha que o pai ia viver noutra casa; foi difícil enfrentar os jantares de família sem ele; foi estranho habituar-me ao silêncio das noites sem discussões nem desculpas esfarrapadas.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela manhã fatídica em Lisboa. Mais forte? Talvez. Mais desconfiada? Sem dúvida.
Pergunto-me muitas vezes: será possível perdoar verdadeiramente uma traição destas? Ou será que há feridas que nunca cicatrizam totalmente?