O Conselho Ignorado: Reflexões de António Sobre a Vida e a Perda

— António, não vás por esse caminho, filho. — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, trémula, quase suplicante. Eu, com vinte e três anos e uma raiva surda a ferver-me no peito, nem olhei para trás. — Já chega, mãe. Não preciso que me digas o que fazer. Já não sou uma criança.

Se soubesse o que sei hoje, teria parado. Teria ouvido. Mas naquele momento, tudo o que queria era sair de casa, fugir daquele ambiente sufocante onde cada conselho parecia uma crítica e cada silêncio, um julgamento.

O meu irmão João estava sentado à mesa, os olhos baixos, a mexer no telemóvel. Sempre calado, sempre a tentar evitar conflitos. Era dois anos mais novo do que eu, mas parecia mais velho na sua serenidade. — António, deixa lá isso — murmurou ele, sem levantar os olhos. — Não vale a pena discutir.

— Não te metas, João! — atirei-lhe, mais agressivo do que pretendia. Ele encolheu-se ainda mais na cadeira. A minha mãe suspirou fundo e saiu da cozinha, levando consigo o cheiro do café acabado de fazer e uma tristeza antiga.

A verdade é que sempre fui o rebelde da família. O meu pai morreu cedo, num acidente de trabalho nas obras do metro de Lisboa. Ficámos os três: eu, a minha mãe Maria e o João. Ela fez tudo para nos dar uma vida digna — trabalhou como empregada de limpeza em três sítios diferentes, nunca se queixou. Mas eu sentia-me revoltado com o mundo, com a falta de dinheiro, com as roupas em segunda mão e os almoços de arroz com ovo.

Quando comecei a andar com o pessoal do bairro — o Rui, o Miguel e a Sofia — senti-me finalmente parte de alguma coisa. Eles tinham carros velhos mas cheios de música alta, cigarros baratos e planos para ganhar dinheiro rápido. A minha mãe avisava-me: — António, esses amigos não te levam a lado nenhum. Mas eu ria-me.

Naquela noite fatídica, saí porta fora sem jantar. O João tentou chamar-me: — António, espera! Mas eu já estava na rua. Lembro-me do frio húmido de novembro a cortar-me a cara enquanto descia as escadas do prédio.

Fomos até ao parque das Oliveiras. O Rui tinha arranjado uns comprimidos para vender na escola secundária. Eu hesitei — nunca gostei daquilo — mas precisava do dinheiro para comprar umas sapatilhas novas. A Sofia olhou para mim: — Vais ou ficas?

Fui.

O negócio correu mal. Um dos miúdos passou-se e chamou a polícia. Fugi pelos becos atrás do supermercado Pingo Doce, o coração aos saltos no peito. Quando cheguei a casa já passava da meia-noite. A minha mãe estava sentada no sofá, olhos vermelhos de tanto chorar.

— O João não voltou — disse ela, num sussurro.

O chão fugiu-me dos pés. Saímos à rua à procura dele. Perguntámos aos vizinhos, ligámos aos amigos. Nada. Só no dia seguinte soubemos: o João tinha sido apanhado numa rixa à porta do café do bairro. Tentou separar dois rapazes que se pegavam por causa de um telemóvel roubado. Levou uma facada no abdómen.

Chegámos ao hospital tarde demais.

O funeral foi um borrão de lágrimas e chuva miudinha a bater nos guarda-chuvas pretos. A minha mãe não me olhava nos olhos. Eu sentia-me vazio por dentro, como se tivessem arrancado um pedaço de mim.

Os dias seguintes foram um tormento silencioso. O apartamento ficou demasiado grande para dois corpos tão pequenos na dor. A minha mãe andava pela casa como um fantasma; eu trancava-me no quarto e ouvia música alta para não pensar.

Uma noite, ouvi-a chorar baixinho na cozinha. Fui ter com ela. Sentei-me à sua frente sem saber o que dizer.

— Se tivesses ouvido… — murmurou ela, sem me olhar.

— Eu sei… — respondi, a voz embargada.

— O João era bom rapaz… sempre tentou ajudar-te…

Desatei a chorar ali mesmo, como uma criança perdida.

Os meses passaram devagar. Tentei voltar à escola, mas não conseguia concentrar-me em nada. Os amigos afastaram-se; cada um seguiu o seu caminho. O Rui foi preso por roubo; a Sofia engravidou e mudou-se para Setúbal; o Miguel desapareceu sem deixar rasto.

Fiquei sozinho com a culpa.

A minha mãe adoeceu pouco depois do Natal. Um cansaço estranho tomou conta dela; os médicos disseram que era depressão profunda. Passei a cuidar dela como pude: fazia-lhe chá, levava-a ao centro de saúde, sentava-me ao seu lado nas tardes longas de inverno.

Um dia encontrei uma carta do João no fundo da gaveta da secretária dele:

“António,
Se algum dia leres isto é porque já não estou aí para te dizer cara a cara: não és mau rapaz. Só estás perdido. Eu acredito em ti, mano. Não deixes que os erros te definam.
João”

Li aquelas palavras vezes sem conta até as saber de cor.

Foi então que decidi mudar de vida. Procurei trabalho num café perto de casa; inscrevi-me num curso noturno de eletricista; comecei a ajudar nas associações juvenis do bairro para afastar outros miúdos dos caminhos errados.

A minha mãe melhorou devagarinho; nunca voltou a ser quem era antes da morte do João, mas aprendeu a sorrir outra vez quando me via chegar cansado do trabalho ou quando lhe levava flores do mercado.

Hoje olho para trás e vejo tudo com uma clareza dolorosa: cada conselho ignorado foi um passo em direção ao abismo; cada discussão desnecessária afastou-me das pessoas que mais amava.

Pergunto-me muitas vezes: quantos de nós só aprendemos quando já é tarde demais? Quantos conselhos dos nossos pais ficam por ouvir até o silêncio ser tudo o que nos resta?

E vocês? Já ouviram tarde demais alguém que vos queria bem?