Não Voltes, Meu Filho…

— Não voltes, meu filho…

As palavras da minha mãe ecoaram pela cozinha fria, misturando-se ao cheiro de café acabado de fazer e ao som distante da chuva a bater nos vidros. Eu estava parado à porta, com a mala ainda na mão, o coração aos pulos no peito. O relógio da parede marcava quase meia-noite, mas parecia que o tempo tinha parado naquele instante.

— Mãe… — tentei dizer qualquer coisa, mas a voz saiu-me trémula, quase um sussurro. Ela não me olhou. Continuou de costas, a limpar as mãos ao avental azul que usava desde que me lembro de ser gente.

— Não voltes — repetiu ela, agora mais baixo, como se tivesse medo que alguém ouvisse. — Já chega de sofreres por nossa causa.

Fiquei ali, imóvel, a tentar perceber se aquilo era real. Tinha passado os últimos três anos em Lisboa, a estudar e a trabalhar em part-time para pagar o quarto minúsculo em Arroios. Sempre que podia, voltava à aldeia para ver os meus pais, mas cada regresso era mais difícil. O silêncio entre nós crescia como erva daninha.

O meu pai estava sentado à mesa, o olhar perdido no copo de vinho tinto. Não disse nada. Nunca dizia. Desde que o meu irmão mais velho, o Rui, tinha desaparecido sem deixar rasto há seis anos, a nossa família nunca mais foi a mesma. A mãe fechou-se em si mesma; o pai tornou-se uma sombra do homem que era.

— Mãe, eu só queria… — comecei de novo, mas ela interrompeu-me.

— Queres o quê? Que tudo volte a ser como antes? Não vai voltar. O Rui não vai voltar. E tu… tu tens de seguir a tua vida.

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Porque é que ela me empurrava para longe? Porque é que nunca falávamos do Rui? Porque é que tudo tinha de ser assim tão difícil?

— Vocês nunca me contam nada! — explodi finalmente. — Sempre a esconderem coisas! Acham que não percebo? Acham que não sinto?

A mãe virou-se finalmente para mim. Os olhos dela estavam vermelhos, mas havia uma dureza nova no seu rosto.

— O teu irmão fez as escolhas dele. E tu tens de fazer as tuas. Não te quero ver preso aqui, nesta casa cheia de fantasmas.

O pai levantou-se devagar, pegou no casaco e saiu sem dizer palavra. Ficámos só nós os dois, mãe e filho, separados por uma mesa e por anos de mágoas não ditas.

— Sabes o que custa mais? — perguntou ela, baixinho. — Ver-te crescer com medo de seres feliz. Como se tivesses culpa do que aconteceu ao teu irmão.

Sentei-me à mesa, sem forças para discutir mais. Ouvia o vento lá fora e sentia-me pequeno outra vez, como quando era criança e tinha pesadelos à noite.

— Mãe… o Rui… — arrisquei.

Ela suspirou fundo.

— O Rui era diferente. Sempre foi. Queria tudo depressa demais. Achava que esta terra era pequena para ele…

Lembrei-me das discussões deles, das portas a bater, do som do carro do Rui a desaparecer na estrada de terra batida. Nunca mais voltou. Diziam na aldeia que tinha ido para França trabalhar nas obras, outros murmuravam coisas piores.

— E tu? — perguntei-lhe. — Nunca pensaste em ir embora?

Ela sorriu com tristeza.

— Eu fui embora uma vez. Antes de conhecer o teu pai. Fui para o Porto trabalhar numa fábrica de conservas. Mas voltei. Voltei porque aqui era o meu lugar… ou pelo menos pensei que fosse.

Olhei para as mãos dela: calejadas, marcadas pelo trabalho e pelo tempo. Quantas vezes terá ela chorado sozinha nesta cozinha?

— Mãe… eu não quero fugir de vocês — disse-lhe. — Só quero entender.

Ela levantou-se e veio sentar-se ao meu lado. Pegou na minha mão com força.

— Às vezes não há nada para entender, filho. Só há o que é. O Rui foi-se embora porque precisava disso para viver. Tu ficaste porque achaste que devias cuidar de nós… mas isso não é justo para ti.

As lágrimas começaram-me a cair sem aviso.

— Tenho medo de vos perder — confessei.

Ela abraçou-me como quando eu era pequeno.

— Já nos perdeste um bocadinho há muito tempo… mas ainda estamos aqui. Só te peço: vive a tua vida sem medo do passado.

Ficámos assim muito tempo, em silêncio, até o pai voltar com os olhos vermelhos e o cheiro da noite agarrado à roupa.

No dia seguinte acordei cedo com o som dos galos e fui dar uma volta pela aldeia. Cada casa contava uma história: a da Dona Emília com as suas galinhas; o senhor António sempre encostado ao muro a fumar; as crianças a correrem descalças pelo largo da igreja. Senti uma saudade antecipada daquele lugar, mas também uma vontade imensa de descobrir quem eu era fora dali.

Quando voltei a casa para me despedir, a mãe estava à porta com um saco de comida para levar comigo.

— Não voltes tão cedo — disse ela, com um sorriso triste mas orgulhoso. — Vai viver.

O pai apertou-me a mão com força e murmurou:

— Tem juízo, rapaz.

Entrei no autocarro com o coração apertado mas leve ao mesmo tempo. Olhei pela janela enquanto a aldeia desaparecia atrás das árvores e pensei em tudo o que deixava para trás: os silêncios, os medos, mas também o amor silencioso dos meus pais.

Agora escrevo estas palavras no meu quarto em Lisboa, com saudades deles mas também com esperança no futuro. Pergunto-me: quantos de nós carregam fantasmas antigos sem nunca os enfrentar? Quantos deixam de viver por medo de magoar quem amam?

E vocês? Já tiveram de escolher entre ficar e partir? Entre proteger quem amam e seguir o vosso próprio caminho?