Não sou só doente: a noite em que perdi tudo
— Vais mesmo sair agora, Miguel? — perguntei, com a voz embargada, enquanto segurava o pequeno Tomás ao colo e via a Inês brincar no tapete da sala. O relógio marcava quase onze da noite, e o vento de janeiro batia forte nas janelas do nosso apartamento em Setúbal.
Miguel nem olhou para mim. Pegou nas chaves do carro com um gesto brusco e respondeu:
— Não estou bem, Marta. Preciso de ir à casa dos meus pais. Eles sabem lidar comigo quando fico assim.
Fiquei ali parada, sentindo o chão fugir-me dos pés. Não era a primeira vez que ele se afastava quando as coisas ficavam difíceis, mas naquela noite havia algo diferente no seu olhar — uma frieza, uma distância que me gelou o coração.
Quando a porta se fechou atrás dele, o silêncio caiu sobre a casa como um manto pesado. Sentei-me no sofá, tentando acalmar o Tomás, que choramingava sem perceber o que se passava. A Inês olhou para mim com aqueles olhos grandes e inocentes:
— A mamã está triste?
Sorri-lhe, forçando uma tranquilidade que não sentia.
— Não, querida. Só estou cansada.
Mas por dentro, uma tempestade rugia. O Miguel estava doente há meses — depressão, disseram os médicos. Eu tentei ser forte, tentei compreender, mas a cada dia sentia-o mais longe. E naquela noite, pela primeira vez, temi que ele não voltasse.
As horas passaram devagar. Pus as crianças na cama e sentei-me à mesa da cozinha, olhando para o telemóvel à espera de uma mensagem, uma chamada — qualquer coisa. Nada. O silêncio era ensurdecedor.
Lembrei-me da última discussão. Ele gritara comigo por causa de um jantar queimado. Eu tentara explicar que estava exausta, que entre o trabalho no hospital e os miúdos não tinha tempo para nada. Ele atirara o prato ao chão e saíra de casa. Voltou horas depois, sem pedir desculpa.
A verdade é que já não éramos felizes há muito tempo. O Miguel era outro desde que perdera o emprego na fábrica. Passava os dias fechado no quarto, a olhar para o vazio ou a jogar no telemóvel. Eu sentia-me sozinha mesmo quando ele estava ao meu lado.
Naquela noite, depois de adormecer as crianças, fui até ao quarto e sentei-me na cama dele — já dormíamos separados há meses. O cheiro dele ainda estava nos lençóis. Peguei numa das suas camisolas e abracei-a, como se isso pudesse trazer de volta o homem por quem me apaixonei.
O telemóvel vibrou finalmente às duas da manhã. Uma mensagem curta: “Fica tranquila. Estou bem.” Nada mais.
Não consegui dormir. A cabeça rodava com perguntas sem resposta. Será que ele ia mesmo à casa dos pais? Ou estaria noutro lugar? Lembrei-me das conversas sussurradas ao telefone, das mensagens apagadas à pressa quando eu entrava na sala.
Na manhã seguinte, acordei com o som do intercomunicador. Era a minha sogra, Dona Lurdes.
— Marta, o Miguel não passou cá esta noite… Está tudo bem?
O coração caiu-me aos pés.
— Ele disse-me que vinha para aí… — respondi, tentando esconder o pânico na voz.
— Não apareceu cá. E não atende o telefone.
A partir desse momento tudo se tornou um pesadelo. Liguei-lhe dezenas de vezes — nada. Liguei aos amigos dele, ao irmão… Ninguém sabia de nada. As crianças começaram a perguntar pelo pai e eu não sabia o que dizer.
Ao fim do dia, recebi uma chamada de um número desconhecido. Era o Miguel.
— Marta… Preciso de te dizer uma coisa.
A voz dele soava distante, quase irreconhecível.
— Diz… — sussurrei, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
— Eu não posso voltar para casa. Não agora… Preciso de tempo para mim. Estou com alguém… Preciso de perceber quem sou.
O mundo desabou à minha volta. Senti-me traída, humilhada, mas acima de tudo vazia. Como é que ele pôde deixar-me assim? Como é que pôde abandonar os filhos?
Durante dias vivi como um fantasma. Ia trabalhar no hospital como se nada fosse, sorria às colegas e aos pacientes enquanto por dentro morria aos bocados. Em casa, fazia tudo mecanicamente: dava banho às crianças, preparava refeições, lia histórias antes de dormir — mas já não era eu.
A família do Miguel tentou ajudar — ou pelo menos fingiu tentar. A Dona Lurdes vinha cá todos os dias perguntar se precisava de alguma coisa, mas eu via nos olhos dela a vergonha e a raiva pelo filho ter fugido às responsabilidades.
Os meus pais também não sabiam como lidar com aquilo. O meu pai limitava-se a dizer:
— Tens de ser forte pelos teus filhos.
Mas eu só queria gritar: “E eu? Quem é forte por mim?”
As semanas passaram e fui descobrindo aos poucos a verdade: Miguel estava com uma colega do antigo trabalho — a Andreia, aquela rapariga loira que sempre me cumprimentava com um sorriso falso nas festas da empresa. Senti-me ridícula por nunca ter desconfiado antes.
Um dia, ao buscar a Inês à escola, encontrei a Andreia à porta do café da esquina. Ela olhou para mim com pena — ou talvez fosse arrogância — e disse:
— Espero que consigas perdoar o Miguel… Ele está mesmo mal.
Quis responder-lhe mil coisas horríveis, mas limitei-me a virar costas e segui caminho com a Inês pela mão.
As noites eram as piores. O silêncio da casa parecia gritar tudo aquilo que eu tentava calar durante o dia: o medo de não conseguir criar os meus filhos sozinha; a raiva por ter sido deixada; a culpa por talvez não ter feito mais para salvar o nosso casamento.
Uma noite, depois de adormecer as crianças, sentei-me no chão da cozinha e chorei como nunca tinha chorado antes. Chorei por mim, pelos meus filhos, pelo Miguel — por tudo aquilo que perdemos sem sequer percebermos quando começou a desaparecer.
Foi nesse momento que percebi que tinha de me levantar. Por mim e pelos meus filhos. Comecei a procurar ajuda — psicóloga, grupos de apoio para mães solteiras… Aos poucos fui recuperando pedaços de mim mesma.
O Miguel continuou ausente durante meses. Mandava mensagens esporádicas para saber das crianças, mas nunca perguntava por mim. A Andreia acabou por deixá-lo pouco tempo depois — soube disso pela sogra — e ele tentou voltar para casa.
Desta vez fui eu quem disse não.
— Preciso de tempo para mim — disse-lhe eu, devolvendo-lhe as palavras frias daquela noite fatídica.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que ficou sozinha naquela noite gelada de janeiro. Ainda dói — claro que dói — mas aprendi a viver com as cicatrizes.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem histórias como a minha atrás de portas fechadas? Quantas Martas há em Portugal a tentar ser fortes quando tudo à volta desaba?
E vocês? Já sentiram esse vazio? Como encontraram forças para recomeçar?