Mandei os Meus Filhos à Mercearia, Só Um Voltou Para Casa

— Tiago, leva o teu irmão contigo, por favor. Não me deixes preocupada, está bem? — pedi, tentando esconder a ansiedade que sempre me assaltava quando os via sair juntos.

Tiago revirou os olhos, mas pegou na mão do Miguel com aquele jeito protetor que só os irmãos mais velhos têm. — Vá lá, mãe. Não somos bebés. Já voltamos.

Fechei a porta atrás deles e encostei-me ao batente, sentindo aquele frio na barriga que só as mães conhecem. O Miguel tinha apenas sete anos, mas era teimoso como uma mula. O Tiago, com treze, já se achava homem feito, mas eu via-lhe ainda as inseguranças nos olhos. A mercearia ficava a dois quarteirões de casa, numa rua movimentada de Almada, mas nunca se sabe…

O relógio parecia gozar comigo. Dez minutos. Quinze. Vinte. Fui à janela, olhei para a rua. Nada. Peguei no telemóvel e liguei ao Tiago. Chamou, chamou, ninguém atendeu. O meu coração começou a bater mais depressa.

De repente, ouvi passos apressados na escada. Era o Tiago, ofegante, com as mãos vazias e os olhos arregalados de pânico.

— Mãe! O Miguel… ele… ele desapareceu! — gritou, quase sem ar.

O chão fugiu-me dos pés. — Como assim desapareceu?! Onde é que ele está?!

Tiago tremia. — Estávamos na fila da caixa e ele disse que queria ver os cromos novos. Eu disse para não sair dali, mas quando olhei… já não estava! Procurei por todo o lado! Chamei-o! Perguntei às pessoas! Mãe… eu não sei onde ele está!

Senti um nó na garganta e as lágrimas começaram a cair sem controlo. Peguei no telefone e disquei o 112 com as mãos a tremer.

— O meu filho desapareceu! Tem sete anos! Chama-se Miguel! Por favor, ajudem-me!

A polícia chegou em minutos, mas cada segundo parecia uma eternidade. Fizeram perguntas atrás de perguntas: o que vestia o Miguel, se tinha algum sinal especial, se costumava fugir… O Tiago chorava baixinho ao meu lado, repetindo: — Desculpa, mãe… desculpa…

O meu marido chegou a correr do trabalho, pálido como nunca o vi. Abraçou-me com força e juntos tentámos acalmar o Tiago, mas eu sentia raiva a crescer dentro de mim. — Como é que o deixaste sozinho?! — gritei-lhe num momento de desespero.

Ele encolheu-se todo e murmurou: — Eu só queria ver os cromos também…

A polícia vasculhou a zona, falou com lojistas, vizinhos, até com um sem-abrigo que costumava dormir perto da mercearia. Nada. O tempo passava e a esperança esvaía-se.

À noite, a casa estava mergulhada num silêncio pesado. O Tiago não quis jantar. Ficou sentado no sofá, abraçado ao urso de peluche do irmão.

— Mãe… achas que foi culpa minha? — perguntou-me com uma voz tão pequena que quase não ouvi.

Sentei-me ao lado dele e abracei-o com força. — Não é culpa tua, filho. A culpa é minha. Eu é que devia ter ido à mercearia…

Mas no fundo sabia que não era verdade. A culpa não era de ninguém — ou talvez fosse de todos nós.

Os dias seguintes foram um pesadelo sem fim. Cartazes com a foto do Miguel espalhados por toda a cidade. Apelos nas redes sociais. Entrevistas na televisão local. Amigos e vizinhos ajudavam nas buscas. Recebíamos telefonemas de desconhecidos a dizer que tinham visto um menino parecido em Setúbal, em Lisboa, até no Porto… Cada pista era uma esperança renovada e um novo desgosto quando se revelava falsa.

O casamento começou a ceder sob o peso da dor e da culpa. Eu acusava o meu marido de ser frio demais; ele acusava-me de ser histérica e de sufocar os filhos. O Tiago fechou-se numa concha de silêncio e tristeza.

Uma noite ouvi-o chorar baixinho no quarto do Miguel. Entrei sem bater e vi-o deitado na cama do irmão, abraçado à almofada dele.

— Sentes falta dele? — perguntei.

Ele assentiu com lágrimas nos olhos. — Eu devia ter tomado mais conta dele…

Deitei-me ao lado dele e ficámos ali em silêncio, partilhando uma dor que não tinha nome.

Passaram-se semanas sem notícias. A polícia começou a falar em possibilidades sombrias: rapto? Acidente? Fuga?

Um dia recebi uma chamada anónima. Uma voz rouca disse apenas: — Se quiser ver o seu filho outra vez, prepare dez mil euros.

O mundo desabou outra vez. A polícia montou uma operação para apanhar o suposto raptor, mas tudo não passou de uma farsa cruel — alguém a tentar aproveitar-se do nosso desespero.

A partir desse dia deixei de dormir. Passava as noites sentada à janela à espera de ver o Miguel virar a esquina com aquele sorriso traquina.

O Tiago começou a ter pesadelos e a fazer xixi na cama outra vez. O meu marido dormia no sofá quase todas as noites; mal falávamos um com o outro.

Um domingo de manhã, quando já ninguém esperava nada, tocaram à campainha. Era um polícia com um menino pela mão: o Miguel.

Corri para ele como se voasse e abracei-o até quase lhe tirar o ar.

— Onde estiveste?! — perguntei entre soluços.

Ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e assustados. — Uma senhora levou-me para casa dela porque disse que eu estava perdido… Ela deu-me bolachas e deixou-me ver desenhos animados… Depois levou-me à polícia quando viu os cartazes na rua.

A polícia explicou-nos que a mulher era uma idosa solitária que pensou estar a ajudar. Não tinha televisão nem rádio; só soube do desaparecimento quando foi à farmácia dias depois.

O alívio foi tão grande que me faltaram as forças nas pernas. O Tiago chorava agarrado ao irmão como se nunca mais o fosse largar.

Mas nada voltou a ser igual depois disso. O medo ficou entranhado em nós como uma nódoa impossível de tirar. O casamento nunca recuperou totalmente; acabámos por nos separar meses depois.

O Tiago tornou-se mais fechado, mais desconfiado do mundo. O Miguel ficou com medo de sair sozinho durante muito tempo.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que alguma vez voltaremos a ser uma família normal? Ou será que há feridas que nunca saram?

E vocês? Já sentiram medo de perder alguém assim? Como se volta a confiar depois de perder o chão?