Herança de Mágoas: Entre o Amor e o Dinheiro
— Não é justo, mãe! — gritou Andreia, batendo com força a mão na mesa da sala. — Eu sou a mais velha, sempre tive mais responsabilidades! Sempre fui eu a ajudar-te quando o pai estava doente!
Senti o meu coração apertar-se no peito. O eco das palavras dela parecia encher toda a casa, aquela casa onde crescemos, onde tantas vezes partilhámos risos e discussões, mas nunca nada assim. A minha mãe, Maria do Céu, olhava para nós com olhos cansados, como se cada ruga no seu rosto fosse um mapa das batalhas que travou por nós.
— Andreia, filha… — tentou ela, a voz trémula — O teu pai quis que tudo fosse dividido de forma igual. Não é uma questão de idade ou de quem fez mais. É uma questão de amor e justiça.
Eu, Inês, sentada no canto do sofá, sentia-me pequena. Sempre fui a irmã mais nova, sempre vivi à sombra da Andreia. Ela era a filha perfeita: notas altas, campeã de natação, a primeira a sair de casa para estudar em Lisboa. Eu fiquei para trás, a cuidar do pai quando ele já não conseguia levantar-se sozinho da cama. Mas nunca reclamei. Era o meu papel.
— Justiça? — Andreia bufou, cruzando os braços. — Justiça era reconhecer tudo o que fiz por esta família! Tu sabes quanto gastei em viagens para vir cá ajudar? Sabes quantas noites perdi com preocupações?
A minha mãe olhou para mim, como se pedisse ajuda. Mas eu não sabia o que dizer. O silêncio entre nós era pesado, quase sufocante.
Lembrei-me de uma noite em particular, há dois anos. O pai estava já muito fraco e pediu-me para lhe ler um poema do Eugénio de Andrade. Andreia ligou nessa noite, mas eu não atendi. Estava demasiado ocupada a segurar-lhe a mão enquanto ele chorava baixinho. Nunca contei isso a ninguém.
— Andreia, não é uma competição — murmurei finalmente. — Todos sofremos. Todos demos o que podíamos.
Ela virou-se para mim com olhos de fogo.
— Tu sempre foste a protegida! A menina dos olhos da mãe! Nunca te faltou nada!
— Isso não é verdade! — respondi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Eu fiquei aqui! Fui eu que vi o pai morrer!
O silêncio caiu de novo. A minha mãe levantou-se devagar e foi buscar um envelope ao móvel do corredor. Voltou e pousou-o na mesa.
— O vosso pai deixou uma carta para cada uma — disse ela, com voz embargada. — Talvez vos ajude a perceber o que realmente importa.
Trocámos olhares desconfiados. Peguei na minha carta com mãos trémulas e abri-a. As palavras do meu pai eram simples, mas cheias de ternura:
“Minha querida Inês,
Sei que nem sempre te sentiste vista nesta família. Mas foste tu quem ficou ao meu lado até ao fim, quem me deu conforto nos dias mais escuros. Não deixes que o dinheiro vos separe. Lembra-te: o amor é o maior legado que posso deixar-vos.”
Olhei para Andreia. Ela chorava em silêncio enquanto lia a sua carta.
— Eu só queria ser reconhecida… — sussurrou ela, finalmente quebrando.
Aproximei-me dela e abracei-a. Pela primeira vez em muitos anos, senti que éramos irmãs outra vez.
Mas os dias seguintes foram duros. A partilha da herança tornou-se um campo de batalha: advogados, papéis, contas bancárias congeladas. Os tios começaram a tomar partido; uns diziam que Andreia tinha razão, outros defendiam-me a mim. A aldeia inteira parecia saber dos nossos problemas.
Uma tarde, encontrei a minha mãe sentada no jardim, sozinha.
— Mãe… — comecei.
Ela sorriu tristemente.
— Nunca pensei ver as minhas filhas assim…
Sentei-me ao lado dela e ficámos em silêncio durante muito tempo.
No funeral do pai, Andreia não quis falar comigo. Passou por mim como se eu fosse invisível. Senti um vazio tão grande que pensei que nunca mais iria conseguir respirar normalmente.
Os meses passaram e as feridas não sararam. A Andreia mudou-se para o Porto com o marido e deixou de ligar à minha mãe. Eu continuei na aldeia, a tentar reconstruir os pedaços da nossa família partida.
Um dia recebi uma mensagem dela:
“Desculpa por tudo. Sinto falta da nossa infância. Podemos tentar recomeçar?”
Chorei tanto nesse dia que pensei que ia desidratar.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena tanta luta por dinheiro? Quantas famílias se destroem por causa de uma herança? Será que algum dia vamos conseguir perdoar-nos verdadeiramente?
E vocês? Já passaram por algo assim? O que vale mais: o dinheiro ou as pessoas que amamos?