“Filhos Não São Plantas; Não Crescem Sozinhos”: O Desabafo de Uma Irmã Portuguesa

— Filhos não são plantas, Mariana! Não crescem sozinhos! — O grito da minha irmã ecoou pela cozinha, atravessando as paredes finas do nosso apartamento em Almada. Eu estava de costas, a lavar a loiça, mas senti o peso das palavras dela como se fossem pedras atiradas contra mim.

A minha mãe, sentada à mesa com as mãos entrelaçadas, olhava para o vazio. O meu pai, como sempre, tinha saído cedo para o café, fugindo de qualquer confronto. E eu, com apenas vinte e três anos, sentia-me esmagada entre o dever de cuidar do meu filho pequeno e o ressentimento que crescia dentro de mim como uma erva daninha.

— Achas que é fácil? — respondi, sem me virar. — Achas que eu não faço tudo o que posso? O Miguel está bem, tem comida, roupa lavada…

— Não é só isso! — interrompeu a Ana, a minha irmã mais velha. — Ele precisa de ti! Precisa de uma mãe presente, não de uma sombra que anda pela casa como um fantasma!

O silêncio caiu pesado. O Miguel brincava na sala, alheio ao tumulto. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco. Não ia chorar à frente dela. Não ia mostrar fraqueza.

Desde pequena que a Ana era assim: directa, dura, incapaz de esconder o que sentia. Eu sempre fui mais reservada, preferia guardar as mágoas para mim. Mas naquele dia, algo mudou. Senti uma raiva antiga a borbulhar cá dentro.

— Tu falas como se soubesses tudo! — atirei-lhe. — Mas tu nunca tiveste filhos! Nunca soubeste o que é acordar de hora a hora porque ele tem medo do escuro ou porque está doente! Nunca soubeste o que é sentir-te sozinha mesmo rodeada de gente!

A Ana calou-se por um momento. Olhou para mim com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os meus, mas tão diferentes na forma como viam o mundo.

— Talvez não saiba — disse ela, baixinho. — Mas sei o que é crescer sem mãe. E não quero isso para o Miguel.

As palavras dela atingiram-me como uma bofetada. A nossa mãe estava ali, mas era como se não estivesse. Desde que o meu pai perdera o emprego na Lisnave e começara a beber mais do que devia, a minha mãe fechara-se numa concha de tristeza e resignação. Eu e a Ana crescemos sozinhas, cada uma à sua maneira.

Naquela noite, depois de todos se recolherem aos quartos, fiquei sentada na sala escura a ouvir o som distante dos carros na rua. O Miguel dormia no sofá, abraçado ao seu peluche preferido. Aproximei-me dele e acariciei-lhe o cabelo loiro. Senti um aperto no peito.

Lembrei-me da infância: dos gritos do meu pai quando chegava bêbado a casa, das lágrimas silenciosas da minha mãe, das noites em que eu e a Ana nos abraçávamos na cama para afastar o medo. Prometi a mim mesma que seria diferente com o meu filho. Mas agora via-me a repetir padrões antigos sem dar por isso.

No dia seguinte, acordei com o som da campainha. Era o meu pai, com os olhos vermelhos e hálito a vinho barato.

— Mariana, preciso de dinheiro — disse ele sem rodeios.

— Não tenho — menti.

Ele olhou para mim com desprezo e saiu batendo a porta. Senti-me pequena, impotente. A Ana apareceu atrás de mim.

— Não podes continuar assim — disse ela suavemente. — Tens de pedir ajuda.

— A quem? — perguntei, quase num sussurro. — A ti? À mãe? Ao pai?

Ela suspirou.

— Ao menos tenta falar com alguém. Com uma assistente social… com um psicólogo…

Ri-me amargamente.

— Achas que eles querem saber? Somos só mais uma família desfeita neste bairro.

A Ana aproximou-se e abraçou-me. Pela primeira vez em anos, deixei-me ir naquele abraço e chorei tudo o que tinha guardado cá dentro.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A Ana insistiu para irmos juntas ao centro de saúde falar com uma psicóloga. A princípio resisti, mas acabei por ceder. Fui recebida por uma senhora de voz calma chamada Dona Teresa.

— Mariana, não há vergonha nenhuma em pedir ajuda — disse ela enquanto eu lhe contava tudo: o medo, a solidão, a raiva contida.

Saí dali mais leve, mas também assustada com tudo o que tinha admitido em voz alta pela primeira vez.

Em casa, as coisas começaram lentamente a mudar. A Ana vinha mais vezes ajudar-me com o Miguel. A minha mãe começou a sair do quarto e a sentar-se connosco à mesa. O meu pai continuava ausente, mas já não me doía tanto.

Uma tarde, enquanto brincava com o Miguel no parque da Cova da Piedade, vi uma mãe a gritar com o filho porque ele sujara as calças na lama. Senti vontade de ir lá dizer-lhe para ter calma, para aproveitar aqueles momentos pequenos mas preciosos. Mas calei-me e abracei o Miguel com mais força.

À noite, escrevi uma carta à minha mãe. Disse-lhe tudo o que nunca tinha tido coragem de dizer: que precisava dela presente, que não queria ser só mais uma mulher triste nesta família de mulheres tristes.

Ela leu a carta em silêncio e depois abraçou-me como nunca antes.

Os meses passaram e fui aprendendo a pedir ajuda quando precisava. O Miguel começou a sorrir mais, a dormir melhor. Eu também comecei a dormir melhor.

A Ana continuou ao meu lado, firme como sempre. Um dia disse-me:

— Sabes, Mariana… às vezes é preciso coragem para admitir que não conseguimos sozinhas.

Sorri-lhe com gratidão.

Hoje olho para trás e vejo como quase perdi tudo por orgulho e medo de parecer fraca. Vejo também como as palavras duras da Ana foram um ponto de viragem na minha vida.

Pergunto-me: quantas famílias portuguesas vivem presas neste ciclo de silêncio e dor? Quantas mães têm medo de pedir ajuda? E se partilhássemos mais as nossas dores… será que conseguiríamos curar-nos juntos?