Entre Silêncios e Gritos: O Peso das Palavras Não Ditas
— Vais mesmo sair de casa, Leonor? — A voz do meu pai ecoou pela cozinha, rouca e carregada de mágoa.
Eu estava de costas para ele, as mãos trémulas a apertar a pega da mala. O cheiro do café queimado misturava-se com o frio da madrugada que entrava pela janela entreaberta. Não respondi logo. Tinha medo que a minha voz denunciasse o turbilhão dentro de mim.
— Não posso ficar, pai. Preciso de encontrar o meu lugar — murmurei, sem coragem de o encarar.
O silêncio caiu pesado. O relógio da parede marcava cinco da manhã. A minha mãe, sentada à mesa, olhava para as mãos, os olhos vermelhos de tanto chorar. O meu irmão, Tiago, fingia dormir no sofá, mas eu sabia que ouvia cada palavra.
Aquela noite era o culminar de anos de silêncios e palavras engolidas. Cresci numa aldeia pequena perto de Viseu, onde todos se conhecem e ninguém esquece nada. O meu pai era o presidente da junta, homem respeitado, mas em casa era um tirano silencioso. Nunca levantou a mão, mas as palavras dele eram lâminas afiadas.
Lembro-me do dia em que percebi que não era como as outras raparigas da aldeia. Tinha dezasseis anos quando me apaixonei pela Inês, a filha do padeiro. Escondíamos-nos atrás do moinho velho, trocando cartas e beijos apressados. Mas um dia a minha mãe encontrou uma das cartas. Não disse nada na altura, mas naquela noite ouvi-a chorar no quarto ao lado.
A partir daí, tudo mudou. O meu pai começou a olhar para mim como se eu fosse uma estranha. A minha mãe tornou-se ainda mais silenciosa. O Tiago afastou-se. E eu aprendi a calar-me, a esconder quem era.
— Não tens vergonha? — perguntou o meu pai uma noite, quando pensava que eu dormia. — O que é que os vizinhos vão dizer?
A vergonha tornou-se a minha segunda pele. Passei anos a tentar ser aquilo que esperavam de mim: boa filha, boa aluna, discreta. Mas por dentro sentia-me a morrer aos poucos.
Quando terminei o secundário, quis ir estudar para Lisboa. O meu pai recusou-se a pagar-me os estudos. “As mulheres daqui não precisam de universidade”, disse ele. Arranjei trabalho num café e juntei dinheiro às escondidas durante dois anos.
Naquela madrugada em que decidi partir, sabia que estava a destruir a minha família. Mas também sabia que se ficasse ali, nunca seria feliz.
— Leonor… — A voz da minha mãe era um sussurro — Tens mesmo de ir?
Olhei para ela e vi nos olhos dela o reflexo do medo que sempre senti. Medo de ser diferente, medo de desiludir, medo de viver.
— Tenho, mãe. Se não for agora, nunca vou conseguir.
O Tiago levantou-se do sofá e veio ter comigo à porta.
— Vais voltar? — perguntou ele, baixinho.
— Não sei — respondi honestamente.
Saí de casa com o coração aos pedaços. Caminhei até à paragem do autocarro enquanto o sol nascia por detrás dos montes. Senti-me livre e perdida ao mesmo tempo.
Lisboa era tudo aquilo que eu imaginava: barulhenta, cheia de gente diferente, anónima. Arranjei um quarto minúsculo em Arroios e comecei a trabalhar num restaurante enquanto estudava à noite. Pela primeira vez na vida, podia ser quem quisesse.
Mas a liberdade tem um preço. Sentia falta da minha família todos os dias. Ligava à minha mãe às escondidas do meu pai. O Tiago mandava mensagens curtas: “Está tudo bem?” Nunca falávamos sobre o passado.
Conheci a Marta na faculdade. Ela era irreverente, cheia de vida, sem medo de nada nem de ninguém. Apaixonei-me perdidamente. Com ela aprendi a aceitar-me, a olhar-me ao espelho sem vergonha.
Um dia decidi levar a Marta à aldeia. Queria apresentar-lhe a minha família, mostrar-lhe onde cresci. Achei que talvez já tivessem tido tempo para me aceitar.
O reencontro foi um desastre anunciado. O meu pai não nos deixou entrar em casa. A minha mãe chorou baixinho na cozinha enquanto o Tiago tentava disfarçar o desconforto com piadas sem graça.
— Não percebo porque é que tens de nos envergonhar assim — disse o meu pai à porta.
— Não estou a envergonhar ninguém! Só quero ser feliz! — gritei-lhe pela primeira vez na vida.
Ele virou-me as costas e entrou em casa, batendo com a porta com tanta força que os vidros estremeceram.
Voltámos para Lisboa nesse mesmo dia. Passei semanas sem conseguir dormir, consumida pela culpa e pela raiva.
A Marta tentou ajudar-me:
— Leonor, tu não és responsável pela felicidade deles. Tens direito à tua vida.
Mas como podia eu ser feliz sabendo que tinha destruído a minha família?
Os meses passaram e fui-me afastando da Marta também. O peso do passado era demasiado grande.
Um dia recebi uma chamada do Tiago:
— A mãe está doente. Devias vir cá.
Voltei à aldeia com o coração apertado. A minha mãe estava magra e pálida na cama do hospital.
— Desculpa — sussurrou ela quando ficámos sozinhas — Desculpa por não ter sido mais forte por ti.
Chorei como nunca tinha chorado antes. Percebi naquele momento que todos carregamos feridas invisíveis, que muitas vezes repetimos os erros dos nossos pais sem querer.
A minha mãe morreu naquela primavera. O meu pai não falou comigo no funeral. O Tiago abraçou-me em silêncio.
Voltei para Lisboa sozinha, mas algo tinha mudado dentro de mim. Comecei a escrever cartas ao meu pai — cartas que nunca enviei — tentando explicar-lhe quem sou e porque precisei partir.
Hoje vivo com a Inês — sim, aquela mesma Inês da adolescência — reencontrámo-nos por acaso num concerto em Coimbra anos depois. Ela também tinha fugido da aldeia para poder ser ela própria.
Às vezes pergunto-me se algum dia vou conseguir perdoar o meu pai ou se ele algum dia vai tentar compreender-me.
Mas aprendi uma coisa: viver sem me conhecer seria morrer devagarinho todos os dias.
E vocês? Quantas palavras não ditas ainda vos pesam no peito? Quantas vezes deixaram de ser quem são por medo do silêncio dos outros?