Entre Silêncios e Gritos: O Dia em que a Minha Família se Desfez

— Miguel, não fales assim com o teu irmão! — gritei, sentindo a voz tremer mais de raiva do que de autoridade. O prato de arroz mal tocado à minha frente parecia um símbolo perfeito da nossa família: inteiro por fora, mas desfeito por dentro.

Era uma noite fria de novembro em Coimbra, e eu tinha feito questão de preparar o jantar favorito dos meus filhos: arroz de pato, com aquela crosta dourada que só a minha mãe sabia fazer melhor do que eu. Mas o cheiro reconfortante não foi suficiente para abafar a tensão que pairava no ar desde o momento em que o Miguel entrou pela porta, largando a mochila no chão com um estrondo.

— Não percebes, mãe? O Tiago só pensa nele próprio! — atirou Miguel, os olhos brilhando de lágrimas que ele se recusava a deixar cair.

Tiago, mais velho dois anos, manteve-se calado, mastigando devagar, como se cada garfada fosse uma batalha. Eu olhava para eles e via os meninos que corriam pelo quintal da casa dos avós em Viseu, sujos de terra e rindo juntos. Agora, mal conseguiam partilhar a mesma sala.

— Chega! — tentei impor ordem. — Sentem-se e comam. Já basta o que se passa lá fora para ainda termos guerra cá dentro.

Mas era inútil. Desde que o pai deles nos deixou — há seis meses, sem aviso, sem explicação —, tudo se tornou uma luta. Eu própria sentia-me à deriva, mas precisava de ser forte por eles. Ou pelo menos fingir.

Miguel empurrou o prato e levantou-se.

— Vou sair. Não aguento mais isto.

— Vais sair para onde? São quase dez da noite! — perguntei, tentando não soar desesperada.

Ele encolheu os ombros e saiu sem olhar para trás. O silêncio que ficou foi mais pesado do que qualquer discussão.

Tiago pousou o garfo e olhou-me nos olhos pela primeira vez naquela noite.

— Mãe… desculpa. Eu devia tentar ser melhor irmão. Mas às vezes sinto que estou sozinho nisto tudo.

Senti as lágrimas ameaçarem-me também. Aproximei-me dele e abracei-o com força.

— Não estás sozinho, filho. Eu estou aqui. Sempre estarei.

Mas será que estava mesmo? Ou estava apenas a sobreviver, agarrada à rotina para não desmoronar?

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na sala à espera do Miguel, ouvindo cada carro que passava na rua estreita do bairro. Quando finalmente entrou, já passava da meia-noite. Trazia os olhos vermelhos e cheirava a tabaco.

— Onde estiveste? — perguntei baixinho.

— Com o Rui. Só precisava de sair daqui um bocado.

Quis ralhar-lhe, mas abracei-o em vez disso. Ele deixou-se ficar nos meus braços como quando era pequeno e tinha medo do escuro.

Os dias seguintes foram uma sucessão de silêncios constrangedores e pequenas explosões. A escola ligou-me: Miguel tinha faltado a três aulas seguidas. Tiago começou a chegar cada vez mais tarde do trabalho no café da esquina. Eu tentava manter tudo a funcionar — contas pagas, comida na mesa — mas sentia-me cada vez mais sozinha.

Uma tarde de sábado, enquanto limpava a casa, encontrei uma carta no quarto do Miguel. Não resisti à tentação de ler:

“Mãe,
Desculpa se te desiludo todos os dias. Sinto-me perdido desde que o pai foi embora. Não sei quem sou sem ele aqui. Às vezes penso em fugir, mas depois lembro-me de ti e do Tiago e fico. Só queria que tudo voltasse ao normal.”

Sentei-me na cama dele e chorei como não chorava há meses. Percebi então que não era só eu que estava a sofrer em silêncio.

Nessa noite, chamei-os à sala.

— Chega de fingirmos que está tudo bem — disse-lhes, com a voz firme apesar das lágrimas nos olhos. — Estamos todos magoados. Mas somos uma família. E precisamos uns dos outros.

Tiago olhou para mim com surpresa. Miguel baixou os olhos.

— Eu só queria que o pai voltasse — murmurou Miguel.

Tiago levantou-se e abraçou-o. Pela primeira vez em meses, vi-os juntos, sem barreiras.

— Também eu — disse Tiago. — Mas temos-nos uns aos outros.

A partir desse dia, as coisas não ficaram perfeitas. Ainda discutíamos, ainda havia dias maus. Mas começámos a falar mais: sobre o pai, sobre a escola, sobre os medos e as saudades.

Um dia, ao regressar do trabalho, encontrei um bilhete na porta do frigorífico:

“Mãe, fomos ao cinema juntos. Não te preocupes com o jantar. Amo-te.” Assinado: Tiago & Miguel.

Sorri pela primeira vez em muito tempo.

Hoje olho para trás e percebo que os desafios não nos destruíram; obrigaram-nos a olhar uns para os outros com mais verdade. O amor de mãe não resolve tudo, mas pode ser o fio que impede uma família de se perder completamente.

Será que alguma vez conseguimos realmente sarar as feridas deixadas por quem parte? Ou aprendemos apenas a viver com elas? Gostava de saber como outras mães lidam com estas dores silenciosas…