Entre Silêncios e Gritos: A Minha Vida na Sombra de Lisboa

— Mariana! Anda cá imediatamente! — A voz da minha mãe ecoou pela casa, cortando o silêncio pesado da noite. O cheiro a sopa de feijão pairava no ar, misturado com o aroma metálico da chuva que batia nas janelas do nosso pequeno apartamento em Chelas. Eu tinha doze anos e já sabia que aquela noite não ia acabar bem.

Desci as escadas devagar, sentindo o chão frio de mosaico sob os pés descalços. O meu pai estava sentado à mesa, olhar perdido na televisão desligada, enquanto a minha mãe gesticulava com as mãos, os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Não podes continuar assim, António! — gritou ela, a voz embargada. — A Mariana merece melhor!

O meu pai não respondeu. Limitou-se a levantar-se, pegou no casaco e saiu porta fora, deixando um silêncio ensurdecedor atrás de si. A minha mãe caiu de joelhos no chão da cozinha, soluçando baixinho. Fiquei ali parada, sem saber se devia abraçá-la ou fugir para o meu quarto.

Naquela noite, ouvi-a chamar o meu nome uma última vez antes de desaparecer no escuro. Nunca mais voltou.

Os dias seguintes foram um borrão de perguntas sem resposta. Os vizinhos cochichavam nos corredores, a minha avó veio buscar-me e levou-me para a sua casa em Alfama. O meu pai nunca mais falou sobre a minha mãe. Limitava-se a ir trabalhar e voltar tarde, cheirando a vinho barato e desilusão.

Cresci assim, entre silêncios e gritos, aprendendo a esconder as lágrimas e a sorrir quando era preciso. A escola era o meu refúgio, mas também lá sentia o peso do meu segredo. As outras crianças falavam das mães com ternura; eu inventava histórias sobre viagens e presentes que nunca recebi.

Aos dezasseis anos, conheci o Miguel. Ele era diferente dos outros rapazes: tinha um sorriso fácil e olhos que pareciam ver através das minhas mentiras. Começámos a namorar às escondidas, porque o meu pai não queria saber de namorados nem de festas.

Uma noite, depois de um jantar tenso em casa da minha avó, decidi contar-lhe tudo.

— Miguel, eu não sei quem sou — confessei-lhe, sentada num banco do Miradouro de Santa Catarina. — Sinto que metade de mim desapareceu com a minha mãe.

Ele pegou na minha mão e prometeu que ia ajudar-me a encontrar respostas. Foi ele quem me incentivou a procurar a minha mãe, mesmo quando todos diziam que era melhor esquecer.

Durante meses, procurei pistas: cartas antigas, fotografias rasgadas, recados escondidos no fundo das gavetas. Descobri que a minha mãe tinha uma irmã em Setúbal, alguém de quem nunca ouvira falar. Com o coração aos pulos, apanhei o comboio sozinha pela primeira vez.

A casa da tia Rosa era pequena e cheirava a maresia. Ela abriu-me a porta com um olhar desconfiado, mas quando lhe disse quem era, abraçou-me como se me conhecesse desde sempre.

— A tua mãe amava-te muito — sussurrou ela ao ouvido. — Mas havia coisas que não podias saber…

Foi ali que soube da verdade: o meu pai tinha traído a minha mãe durante anos. Ela tentou perdoá-lo, mas não conseguiu viver com a dor. Fugiu para começar de novo em Espanha, deixando para trás tudo o que conhecia — incluindo eu.

Voltei para Lisboa com uma raiva surda no peito. Confrontei o meu pai naquela mesma noite.

— Porque é que nunca me disseste nada? — gritei-lhe, lágrimas a correrem-me pelo rosto.

Ele olhou para mim como se me visse pela primeira vez.

— Tentei proteger-te — murmurou. — Não queria que sofresses ainda mais.

Mas eu já sofria há anos. Saí de casa e fui viver com o Miguel e os pais dele em Campo de Ourique. Pela primeira vez senti-me parte de uma família verdadeira: jantávamos juntos à mesa, ríamos das pequenas coisas e partilhávamos sonhos para o futuro.

No entanto, o passado continuava a assombrar-me. Recebia cartas da minha mãe de vez em quando — palavras escritas à pressa, cheias de saudade e arrependimento. Mas nunca tive coragem de ir ter com ela.

O tempo passou. Casei-me com o Miguel, tivemos uma filha chamada Inês. Jurei a mim mesma que nunca lhe esconderia nada, que seria sempre honesta sobre quem sou e de onde venho.

Mas às vezes dou por mim a olhar para o espelho e a perguntar: será que alguma vez vou conseguir perdoar verdadeiramente? Será possível reconstruir uma vida sobre os escombros do passado?

E vocês? Acham que é possível perdoar quem nos magoou tanto? Ou há feridas que nunca saram?