Entre Silêncios e Gritos: A Minha Vida Entre a Gratidão e o Desespero

— Maria, onde é que puseste as minhas chaves?! — O rugido do meu pai ecoava pela casa, misturando-se com o trovão lá fora. Eu, com apenas dez anos, encolhia-me atrás da porta da cozinha, sentindo o coração a bater tão forte que parecia querer saltar-me do peito. A minha mãe, de olhar cansado e mãos trémulas, tentava acalmar o ambiente: — António, por favor, não grites. As crianças estão assustadas.

Mas ele não ouvia. Nunca ouvia. Cresci num T3 em Almada, paredes finas e sonhos ainda mais frágeis. O meu irmão mais novo, o João, escondia-se debaixo da mesa sempre que o pai chegava a casa depois do trabalho. Eu tentava ser invisível, mas a verdade é que ninguém é invisível numa casa pequena onde os gritos são mais altos do que as paredes.

A minha mãe era o pilar da casa. Trabalhava como empregada de limpeza num hospital e ainda arranjava forças para nos dar colo à noite. Lembro-me de uma vez, depois de um jantar em que o pai atirou o prato ao chão porque a sopa estava fria, ela sentou-se ao meu lado na cama e sussurrou:

— Maria, a vida nem sempre é justa, mas temos de ser gratos pelo que temos.

Na altura, não entendi. Como podia agradecer por viver num ambiente onde o medo era rotina? Mas ela insistia na gratidão, como se fosse uma oração secreta que a mantinha de pé.

Os anos passaram e os conflitos aumentaram. O meu pai perdeu o emprego nas docas e a raiva tornou-se ainda mais presente. Começou a beber mais. As discussões tornaram-se físicas. Uma noite, ouvi um estalo seco vindo da sala. Corri para lá e vi a minha mãe caída no chão, sangue a escorrer-lhe do lábio.

— Sai daqui! — gritou ele para mim, olhos vermelhos de álcool e fúria.

Fugi para casa da vizinha, a Dona Rosa, que me abraçou sem fazer perguntas. Foi ela quem me ensinou o poder do silêncio. Sentávamo-nos à janela a ver a chuva cair e ela dizia:

— Às vezes, Maria, é no silêncio que ouvimos as verdades mais importantes.

A escola era o meu refúgio. Os professores notavam as minhas olheiras e os meus trabalhos sempre impecáveis. Um dia, a professora Teresa chamou-me ao gabinete:

— Maria, se precisares de falar… estou aqui.

Quis falar. Quis gritar tudo o que me sufocava por dentro. Mas calei-me. O medo de destruir a família era maior do que a vontade de ser salva.

O tempo passou e eu cresci depressa demais. Aos dezasseis anos comecei a trabalhar numa pastelaria para ajudar em casa. O João começou a faltar à escola e a meter-se em sarilhos. A minha mãe envelheceu vinte anos em cinco. O meu pai continuava igual: ausente mesmo quando estava presente.

Uma noite, depois de um turno longo na pastelaria, cheguei a casa e encontrei o João sentado no passeio, olhos vermelhos de chorar.

— O pai bateu na mãe outra vez — disse ele, voz embargada.

Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim. Entrei em casa determinada a pôr fim àquilo tudo. Encontrei o meu pai sentado à mesa da cozinha, olhar vazio.

— Basta! — gritei. — Não aguentamos mais!

Ele olhou para mim como se me visse pela primeira vez. Não disse nada. Levantou-se e saiu de casa sem olhar para trás.

Naquela noite dormimos todos juntos na mesma cama: eu, o João e a minha mãe. Pela primeira vez em muitos anos, senti uma paz estranha no peito.

Os dias seguintes foram difíceis. A minha mãe chorava muito mas dizia sempre:

— Agora somos livres.

O meu pai nunca mais voltou. Soube mais tarde que foi viver para o Norte com uma irmã que mal conhecíamos. Nunca lhe perdoei completamente, mas também nunca consegui odiá-lo verdadeiramente.

A vida seguiu em frente. O João acabou por abandonar a escola e foi trabalhar para uma oficina. Eu consegui entrar na faculdade com uma bolsa de estudo — fui a primeira da família a fazê-lo. A minha mãe continuou no hospital até à reforma, sempre com aquele sorriso triste mas resiliente.

Durante anos tentei construir uma vida diferente da que tive: casei-me com o Miguel, um homem calmo e paciente; tive dois filhos maravilhosos; comprei uma casa pequena mas cheia de luz em Setúbal.

Mas as marcas do passado nunca desaparecem completamente. Às vezes dou por mim a levantar a voz sem querer quando os meus filhos fazem asneiras. Outras vezes sinto um medo irracional de perder tudo aquilo por que lutei tanto.

Numa tarde chuvosa como aquela da minha infância, sentei-me com a minha filha Inês ao colo e ela perguntou:

— Mamã, porque é que às vezes ficas triste?

Olhei para ela e lembrei-me das palavras da minha mãe: “Temos de ser gratos pelo que temos.”

— Porque às vezes lembro-me das coisas más que já vivi — respondi — mas depois olho para ti e fico feliz outra vez.

A Inês sorriu e abraçou-me com força.

Hoje percebo que a gratidão não apaga as cicatrizes, mas ajuda-nos a viver com elas. E percebo também que há silêncios que gritam mais alto do que qualquer discussão.

Às vezes pergunto-me: se tivéssemos ouvido mais uns aos outros em vez de gritarmos tanto… teria sido tudo diferente? E vocês? Ouvem mesmo quem vos rodeia ou deixam-se levar pelo barulho dos vossos próprios medos?