Entre Portas Fechadas: O Dia em Que Tudo Mudou
— Não pode ser! — pensei, ouvindo as batidas insistentes na porta. O relógio marcava sete da manhã e eu mal tinha conseguido dormir. O eco das pancadas misturava-se com o som abafado do trânsito lá fora, típico de Lisboa a acordar. Levantei-me devagar, sentindo o frio do soalho de madeira nos pés descalços.
— Quem é? — perguntei, tentando soar firme, mas a voz saiu trémula.
— Somos a família Silva! Por favor, precisamos falar consigo! — respondeu uma mulher do outro lado, a voz embargada de urgência.
Abri a porta apenas uma fresta, o suficiente para ver três rostos ansiosos: uma mulher de meia-idade, um homem magro com olhar cansado e uma rapariga adolescente que se encolhia atrás deles. O cheiro a chuva molhada entrava pelo corredor.
— Desculpe, mas não vos conheço. O que querem?
A mulher aproximou-se, quase encostando o rosto à porta.
— Por favor, senhor João, disseram-nos que este apartamento estava para alugar. Não temos para onde ir. O senhorio prometeu-nos as chaves hoje…
O nome dela era Maria. O marido, António. E a filha, Inês. Fiquei ali parado, o coração aos saltos. Eu alugava aquele apartamento há meses, mas nunca tinha tido problemas destes. O senhorio, o velho Sr. Manuel, era conhecido por ser pouco claro nos negócios. Tinha-me avisado que talvez viessem ver o apartamento para futuras visitas, mas nunca mencionou entregar as chaves a outra família.
— Isto deve ser um engano — tentei explicar. — Eu sou inquilino aqui. Não posso deixar-vos entrar sem autorização do senhorio.
Maria começou a chorar baixinho. António olhou para mim com raiva contida.
— O senhorio prometeu! Temos tudo aqui! — mostrou-me uns papéis amassados.
Peguei nos documentos com mãos trémulas. Eram recibos de sinalização e um contrato assinado… mas com datas trocadas e sem validade legal. Senti um nó no estômago. Recordei-me da minha infância em Setúbal, quando a minha mãe perdeu a casa por causa de promessas quebradas e contratos duvidosos. Lembrei-me das noites em que dormíamos no carro, do medo de não ter onde voltar.
— Lamento muito — disse, devolvendo os papéis. — Mas não posso fazer nada sem falar com o Sr. Manuel.
A tensão era palpável. Inês olhava para mim como se eu fosse o vilão da história. Senti-me pequeno, impotente.
Fechei a porta devagar e encostei-me ao batente. Do outro lado ouvi sussurros, choros abafados e passos hesitantes a afastarem-se pelo corredor do prédio antigo.
O resto do dia foi um tormento. Tentei ligar ao senhorio dezenas de vezes, sem resposta. Falei com vizinhos: ninguém sabia de nada, mas todos tinham opiniões. A D. Rosa do terceiro andar dizia que aquela família já tinha sido enganada antes; o Sr. Carlos do rés-do-chão achava que eu devia chamar a polícia logo.
À noite, enquanto jantava sozinho à mesa da cozinha, ouvi novamente passos no corredor. Desta vez eram mais leves, quase tímidos. Fui espreitar pelo olho mágico: era Inês, sozinha, sentada no chão com uma mochila ao colo.
Abri a porta devagar.
— Precisas de alguma coisa?
Ela olhou para mim com olhos vermelhos.
— Só queria saber… porque é que as pessoas mentem tanto? — perguntou baixinho.
Fiquei sem resposta. Sentei-me ao lado dela no chão frio do corredor.
— Às vezes as pessoas mentem porque têm medo — disse-lhe finalmente. — Outras vezes porque estão desesperadas… ou porque acham que não têm outra saída.
Ela assentiu em silêncio.
— O meu pai diz que nunca devemos confiar em ninguém — murmurou.
— Nem sempre é assim — tentei contrariar, mas percebi que ela já tinha ouvido demasiadas mentiras para acreditar em mim.
Na manhã seguinte, Maria e António tinham desaparecido do prédio. Inês também já lá não estava. Fiquei dias a pensar neles: para onde teriam ido? Teriam encontrado abrigo? Ou estariam agora na mesma situação em que eu e a minha mãe estivemos anos antes?
Finalmente consegui falar com o Sr. Manuel. Ele riu-se ao telefone quando lhe contei o sucedido.
— Oh João, não ligues! Há sempre gente a tentar dar a volta ao sistema…
Desliguei com raiva contida. Não era só uma questão de sistema; eram vidas reais, sonhos desfeitos à porta de um apartamento velho em Lisboa.
Durante semanas evitei sair de casa com medo de encontrar mais alguém à porta, mais histórias de promessas quebradas e contratos rasgados. Os vizinhos continuaram a comentar nos corredores: uns diziam que eu tinha feito bem em não abrir a porta; outros achavam que devia ter ajudado mais aquela família.
A verdade é que fiquei dividido entre o medo e a compaixão. Entre proteger o pouco que conquistei e não querer ser cúmplice da indiferença alheia.
Hoje olho para aquela porta todos os dias antes de sair de casa e pergunto-me: quantas histórias ficam por contar entre paredes velhas e contratos mal feitos? E se fosse eu do outro lado da porta… teria alguém aberto para mim?