Entre o Silêncio e o Grito: O Dilema de Uma Mãe Portuguesa
— Não posso mais esconder, Leonor. — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, abafada apenas pelo som da chuva a bater nas janelas. Eu estava de costas, a preparar o jantar, mas as palavras dele cortaram-me como uma faca. — Há meses que estou com outra pessoa.
O tempo parou. O cheiro a cebola frita tornou-se nauseante. Senti as pernas fraquejarem, mas agarrei-me à bancada. Não era possível. Não podia ser verdade. Os nossos filhos, o nosso lar, tudo aquilo que construímos…
— Como assim, Miguel? — perguntei, a voz trémula, quase sem me reconhecer.
Ele não me olhou nos olhos. Ficou ali, parado, com as mãos nos bolsos, como se fosse um miúdo apanhado a mentir à mãe. — A Andreia… conheci-a no trabalho. Não planeei nada disto. Mas aconteceu.
O meu mundo desabou naquele instante. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim, misturada com uma tristeza tão funda que quase me afogava. Pensei nos nossos filhos: o Tomás, com 16 anos, sempre tão fechado no quarto; a Mariana, com 12, que ainda dormia com o urso de peluche que lhe dei quando nasceu.
— E os nossos filhos? — perguntei, finalmente virando-me para ele. — Já pensaste neles?
Miguel passou as mãos pelo cabelo. — Não sei o que fazer, Leonor. Não quero magoá-los. Mas também não posso continuar a mentir.
Naquela noite, jantámos em silêncio. O Tomás percebeu logo que algo estava errado. Olhou-me de soslaio, mas não disse nada. A Mariana tentou animar-nos com histórias da escola, mas cada palavra dela era como um prego no meu peito.
Depois do jantar, fechei-me na casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas. O meu reflexo no espelho era o de uma mulher cansada, envelhecida pela dor e pela dúvida. Como é que se explica a uma criança que o pai já não vai dormir em casa? Como é que se protege os filhos do sofrimento quando nós próprias estamos despedaçadas?
Os dias seguintes foram um tormento. Miguel começou a dormir no sofá e evitava-me sempre que podia. Os miúdos sentiam a tensão no ar; Tomás tornou-se ainda mais distante e Mariana começou a fazer perguntas difíceis.
— Mãe, porque é que o pai já não me dá boa-noite? — perguntou ela uma noite, agarrada ao urso.
Sentei-me ao lado dela na cama e tentei sorrir. — O pai está cansado do trabalho, querida. Mas ele gosta muito de ti.
Senti-me uma traidora por mentir-lhe assim. Mas como explicar-lhe a verdade? Como dizer-lhe que o pai tinha escolhido outra mulher?
Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo do trabalho, ouvi vozes na sala. Era Miguel e Tomás.
— Não percebes? — gritava o Tomás. — Estás a destruir tudo! A mãe anda sempre a chorar! A Mariana nem dorme! Porque é que fizeste isto?
Miguel tentou abraçá-lo, mas Tomás afastou-se bruscamente.
— Não toques em mim! — gritou ele antes de sair disparado para o quarto.
Fiquei ali parada, sem saber se devia intervir ou deixar pai e filho resolverem as coisas entre eles. Senti-me impotente.
Nessa noite, Miguel fez as malas e saiu de casa. Mariana chorou até adormecer nos meus braços e Tomás não saiu do quarto durante dois dias.
Os meus pais ligaram-me todos os dias. A minha mãe queria vir cá para casa ajudar-me com os miúdos.
— Leonor, tens de ser forte pelos teus filhos — dizia ela ao telefone. — Não deixes que eles vejam o teu sofrimento.
Mas como esconder-lhes aquilo que eu própria não conseguia suportar?
As semanas passaram e cada dia era uma batalha diferente: convencer Mariana a ir à escola; tentar arrancar uma palavra ao Tomás; fingir normalidade quando tudo à minha volta era caos.
Um sábado à tarde, enquanto arrumava o quarto do Tomás, encontrei um caderno escondido debaixo da cama. Folheei-o e percebi que ele escrevia poemas sobre solidão e raiva. Um deles dizia:
“O silêncio grita mais alto do que qualquer discussão,
E eu sou só um espectador da destruição.”
Senti um aperto no peito. Estava a perder o meu filho e nem sabia como ajudá-lo.
Nessa noite, sentei-me com ele na varanda.
— Tomás, queres falar comigo?
Ele encolheu os ombros.
— Não vale a pena. Ninguém me ouve nesta casa.
— Eu ouço-te — insisti. — Sei que estás magoado. Eu também estou. Mas precisamos um do outro agora mais do que nunca.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas e vi ali toda a dor que sentia.
— Porque é que não fizeste nada? Porque é que deixaste o pai ir embora?
Não soube responder-lhe. Senti-me culpada por não ter lutado mais, por não ter protegido os meus filhos daquela tempestade.
Com Mariana foi diferente. Ela começou a fazer perguntas sobre divórcios na escola e um dia chegou a casa com um desenho: uma casa partida ao meio e duas figuras pequenas de mãos dadas no meio dos escombros.
— Somos nós? — perguntei-lhe.
Ela acenou com a cabeça e abraçou-me com força.
Comecei a perceber que não podia protegê-los de tudo. Que às vezes o melhor era deixá-los sentir a dor para poderem crescer com ela.
Miguel ligava de vez em quando para falar com os miúdos, mas as conversas eram curtas e cheias de silêncios constrangedores.
Uma noite, depois de todos adormecerem, sentei-me sozinha na sala escura e perguntei-me: teria sido melhor intervir mais cedo? Deveria ter lutado pelo nosso casamento ou protegido os meus filhos da verdade?
A vida continuou, mas nunca mais foi igual. Aprendi a viver com as perguntas sem resposta e com a culpa de não ter conseguido evitar o sofrimento dos meus filhos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que alguma vez tomamos as decisões certas quando tudo à nossa volta desaba? Ou será que só podemos escolher entre diferentes formas de dor? E vocês… o que fariam no meu lugar?