Entre o Silêncio e o Grito: O Dia em que o Meu Filho Pediu para Voltar para Casa
— Mãe, por favor… vem buscar-me. Eu não quero ficar aqui. — A voz do Tomás, do outro lado da linha, era um sussurro desesperado, como se tivesse medo de ser ouvido. O meu coração apertou-se de imediato. Eram quase onze da noite e eu e o Rui estávamos sentados no sofá, finalmente a sós depois de meses de cansaço acumulado.
— O que se passa, filho? — perguntei, tentando manter a calma enquanto olhava para o Rui, que já se levantava do sofá, preocupado.
— A avó… ela está diferente. E o Diogo não me liga nenhuma. Sinto-me sozinho. — A voz dele falhava, e eu percebi que as lágrimas estavam prestes a cair.
Dois anos antes, nunca teria imaginado que uma decisão tão simples — deixar os miúdos com a minha mãe durante uns dias — pudesse desencadear tanto sofrimento. Mas tudo começou muito antes desse telefonema.
O Rui tinha acabado de receber uma promoção no banco. Eu, cansada de anos a pagar renda por um apartamento minúsculo em Benfica, insisti: “Está na hora de termos algo nosso.” Ele hesitou, mas acabei por convencê-lo. Fomos ver casas em Odivelas, depois em Loures, até encontrarmos aquele T3 luminoso com varanda e vista para o Tejo. Fizemos contas, esticámos o orçamento, assinámos papéis sem dormir direito durante semanas.
O Diogo, com 15 anos na altura, resmungou: “Outra mudança? Outra escola?” O Tomás, mais novo e sensível, só perguntou se podia levar o aquário com os peixes. Eu prometi-lhes que seria melhor para todos. Mas no fundo, estava cheia de dúvidas.
A mudança foi um caos. Caixas por todo o lado, discussões sobre quem ficava com o quarto maior, vizinhos curiosos a espreitar pelas portas entreabertas. O Rui começou a chegar mais tarde a casa — reuniões intermináveis, dizia ele. Eu própria sentia-me perdida: entre o trabalho no hospital e as tarefas domésticas, mal tinha tempo para respirar.
A minha mãe, a avó Rosa, sempre foi o nosso porto seguro. Quando sugeri que os miúdos ficassem com ela durante uns dias para podermos “recarregar energias”, ela aceitou logo. “Vai fazer-lhes bem sair daqui um bocado”, disse-me ao telefone.
Na primeira noite sem eles, eu e o Rui tentámos recuperar alguma intimidade perdida. Fomos jantar fora — coisa rara — e até rimos das nossas desgraças. Mas logo no segundo dia começaram as mensagens do Diogo: “Posso ir ter com os amigos?” “A avó não me deixa jogar PlayStation depois das dez.” Eu respondia com emojis e promessas vagas.
Mas nada me preparou para aquele telefonema do Tomás.
— O que aconteceu exatamente? — insisti, já a vestir o casaco.
— A avó está… estranha. Fica calada durante horas. Hoje gritou comigo porque deixei cair um copo. O Diogo só fica no quarto dele com os fones nos ouvidos. Sinto-me sozinho, mãe…
O Rui pegou nas chaves do carro sem dizer uma palavra. No caminho até à casa da minha mãe, o silêncio era pesado. Eu revivia mentalmente todas as vezes em que tinha ignorado os sinais: as queixas do Tomás sobre a avó estar “diferente”, as respostas secas da minha mãe ao telefone.
Quando chegámos, a porta estava entreaberta. O Diogo apareceu no corredor, olhos vermelhos de tanto estar ao telemóvel.
— O Tomás está no quarto dele — disse apenas.
Encontrei-o encolhido na cama da infância, abraçado ao urso de peluche que já devia ter largado há anos. Sentei-me ao lado dele e ele desatou a chorar.
— Ela não é a mesma avó… — soluçava. — Fica zangada sem razão. Diz coisas feias…
A minha mãe apareceu à porta do quarto nesse momento. O rosto dela estava fechado como nunca tinha visto.
— Não sei o que se passa convosco — disse ela num tom frio — mas estes miúdos não me respeitam. Não sou criada de ninguém!
O Rui tentou intervir:
— Mãe… calma. Eles são só crianças.
— Crianças? O Diogo já é quase homem! E tu, Ana… sempre foste ingrata! Nunca me agradeceste nada do que fiz por ti!
Aquelas palavras caíram como pedras. Senti-me pequena outra vez, como quando era adolescente e discutíamos por tudo e por nada.
Levámos os miúdos para casa nessa noite. O Tomás adormeceu agarrado a mim na nossa cama grande demais para tanta solidão.
Nos dias seguintes tentei falar com a minha mãe várias vezes. Ela não atendia ou desligava logo. O Diogo fechou-se ainda mais no seu mundo digital; o Tomás começou a ter pesadelos e a pedir para dormir comigo todas as noites.
O Rui tornou-se ainda mais ausente; percebi que ele estava a evitar conflitos comigo e com a minha mãe. Uma noite perguntei-lhe:
— Achas que fizemos mal em mudar de casa? Em pedir tanto à minha mãe?
Ele encolheu os ombros:
— Não sei… às vezes parece que estamos todos perdidos.
As semanas passaram e as feridas não sararam. A minha mãe acabou por me ligar um dia:
— Desculpa… ando cansada. Sinto-me sozinha desde que o teu pai morreu. Não sei lidar com isto tudo.
Chorei ao telefone com ela; prometi visitá-la mais vezes, mas sabia que nada voltaria a ser como antes.
Hoje olho para os meus filhos e pergunto-me se algum dia lhes conseguirei dar a estabilidade que tanto procurei na minha infância. Será que as nossas decisões apressadas destroem laços que julgávamos inquebráveis? Ou será que ainda vamos a tempo de reconstruir aquilo que se partiu?
E vocês? Já sentiram que uma decisão vossa mudou tudo na vossa família? Como lidaram com isso?