Entre o Amor e o Silêncio: A Minha História com o Meu Pai
— Não aguento mais, António! Não vês que estás a destruir a nossa filha?
A voz da minha mãe ecoava pela casa antiga, atravessando as paredes grossas de pedra. Eu estava sentada no topo das escadas, as pernas encolhidas contra o peito, a ouvir cada palavra como se fossem facas. O meu pai, António, respondeu num tom baixo, mas carregado de raiva:
— Tu é que sempre a mimaste demais, Helena. A culpa é tua se ela não sabe o que é responsabilidade.
Naquele momento, percebi que era sobre mim. Sobre a minha decisão de não seguir Direito, como ele queria, e insistir em estudar Belas-Artes em Lisboa. O silêncio pesado que se seguiu à discussão foi apenas interrompido pelo som abafado do choro da minha mãe. Senti-me pequena, esmagada pelo peso das expectativas deles.
Cresci numa aldeia perto de Viseu, onde todos se conhecem e as novidades correm mais depressa do que o vento. O meu pai era o presidente da junta, homem respeitado, de palavra dura e mãos calejadas pelo trabalho no campo. A minha mãe era professora primária, doce mas submissa, sempre a tentar apaziguar os ânimos em casa. Eu era filha única, e desde cedo percebi que carregava nos ombros o fardo dos sonhos deles.
Lembro-me do cheiro da terra molhada nas manhãs de inverno e do som dos sinos da igreja ao domingo. Lembro-me das festas da aldeia, das conversas à volta da lareira e dos olhares de reprovação quando aparecia com as unhas pintadas de azul ou com um livro estranho debaixo do braço. Sempre fui diferente, e isso nunca foi fácil.
A primeira vez que desafiei o meu pai foi aos dezasseis anos. Quis ir ao Porto ver uma exposição de arte contemporânea. Ele proibiu-me:
— Arte? Isso não dá de comer a ninguém! Vais ficar aqui e ajudar a tua mãe.
Mas eu fui na mesma, escondida no autocarro das seis da manhã. Quando voltei, encontrei-o à minha espera no portão. Não me bateu, mas o olhar dele doeu mais do que qualquer bofetada.
Os anos passaram e a tensão entre nós só aumentou. Quando terminei o secundário com média para entrar em Direito na Universidade de Coimbra, ele fez uma festa para toda a aldeia. Mas eu já tinha decidido: Lisboa, Belas-Artes. Quando lhe disse, atirou o prato contra a parede.
— És uma ingrata! — gritou ele. — Tudo o que fiz foi para te dar um futuro melhor!
A minha mãe chorou durante dias. Eu fechei-me no quarto, a desenhar compulsivamente, tentando transformar a dor em cor.
Em Lisboa, senti-me finalmente livre. A cidade era um mundo novo: ruas cheias de vida, pessoas diferentes, vozes e sonhos cruzados. Mas a liberdade tinha um preço. O dinheiro era pouco; partilhava um quarto minúsculo com uma colega de curso, Inês, que se tornou a minha irmã de coração. Trabalhava à noite num café para pagar as contas e estudava durante o dia.
O meu pai deixou de me falar. Só a minha mãe ligava às escondidas:
— Tens comida? Estás bem? — perguntava ela baixinho.
Eu mentia sempre:
— Estou ótima, mãe. Não te preocupes.
Mas havia noites em que chorava sozinha, com saudades do cheiro da lareira e do abraço dela.
No segundo ano do curso conheci o Miguel. Era finalista de Arquitetura, filho de um médico famoso em Lisboa. Tinha um sorriso fácil e olhos que pareciam ver tudo o que eu escondia. Apaixonámo-nos depressa demais. Ele apresentou-me aos pais dele num jantar elegante em Cascais; senti-me deslocada entre talheres de prata e conversas sobre viagens ao estrangeiro.
O Miguel era diferente dos rapazes da aldeia: falava de arte como quem fala de amor e fazia-me sentir bonita até nos dias em que só queria desaparecer. Mas havia algo nele que me inquietava — uma sombra de arrogância, uma necessidade constante de aprovação.
Quando lhe contei sobre o meu pai e os conflitos em casa, ele riu-se:
— Tens de te libertar disso tudo, Leonor! És melhor do que essa gente pequena.
As palavras dele magoaram-me mais do que queria admitir. Não eram “essa gente pequena”; eram a minha família.
No verão desse ano voltei à aldeia para o aniversário da minha mãe. O meu pai ignorou-me durante todo o jantar. Quando tentei falar com ele no quintal, virou-me as costas:
— Não tenho filha nenhuma artista.
Saí dali a tremer, com vontade de nunca mais voltar.
Em Lisboa, as coisas com o Miguel começaram a mudar. Ele queria que eu passasse mais tempo com os amigos dele; criticava os meus desenhos por serem “demasiado tristes”; dizia que eu devia pintar coisas mais alegres se queria vender quadros.
Uma noite discutimos feio:
— Não percebes nada do que faço! — gritei-lhe.
Ele atirou-me à cara:
— Tu é que não percebes nada da vida real!
Acabámos ali mesmo. Senti-me perdida outra vez.
Foi nessa altura que recebi a notícia: a minha mãe estava doente. Cancro no pulmão. O mundo desabou à minha volta. Voltei para casa sem pensar duas vezes.
O meu pai estava diferente — mais velho, mais cansado. A doença da minha mãe aproximou-nos no silêncio dos corredores do hospital. Passávamos horas sentados lado a lado sem dizer nada. Uma noite, ele falou finalmente:
— Sempre quis o melhor para ti… mas acho que nunca soube como mostrar isso.
Chorei nos braços dele como quando era criança.
A minha mãe partiu numa manhã fria de dezembro. A aldeia inteira veio ao funeral; todos me abraçaram como se eu fosse feita de vidro.
Depois disso fiquei mais tempo por lá, a ajudar o meu pai na quinta e a tentar reconstruir alguma coisa entre nós. Ele começou a perguntar pelos meus desenhos; pendurou um deles na sala sem dizer nada.
Hoje vivo entre Lisboa e Viseu. Pinto quadros inspirados nas memórias da aldeia: as vinhas ao entardecer, as mulheres à janela, os rostos marcados pelo tempo. O meu pai vai às exposições sempre que pode; diz aos amigos que tem uma filha artista com orgulho mal disfarçado.
Às vezes pergunto-me: teria sido tudo diferente se eu tivesse cedido? Se tivesse escolhido o caminho mais fácil? Ou será que só encontramos quem somos quando temos coragem de enfrentar quem nos quer moldar?
E vocês? Já sentiram esse peso das expectativas familiares? Até onde iriam para seguir os vossos sonhos?