Entre o Amor e as Lágrimas: O Casamento da Minha Irmã e o Coração da Avó

— Não posso acreditar que me estás a pedir isto, Mariana! — A voz da avó Leonor ecoou pela cozinha, trémula, mas firme. — Sempre vivi aqui, nesta casa. Agora, por causa de um casamento, já não há espaço para mim?

O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma doce do bolo de laranja que a avó preparava todas as manhãs. Mas naquele dia, tudo parecia mais amargo. Eu olhava para ela, sentada à mesa, as mãos enrugadas apertando a chávena com força. O olhar dela, normalmente sereno, estava agora toldado por uma mágoa funda.

— Avó, não é isso… — tentei explicar, sentindo o nó na garganta apertar. — A Matilde precisa de um sítio para ficar até ao casamento. O apartamento dela está em obras e…

— E eu sou o quê? Um móvel velho que se pode pôr na arrecadação? — interrompeu-me, com uma lágrima teimosa a escorrer-lhe pela face.

Oiço passos apressados no corredor. A Matilde entra na cozinha, o cabelo preso num coque apressado, ainda com vestígios de farinha nas mãos.

— Mariana, já falaste com a avó? Preciso mesmo de saber se posso trazer as minhas coisas amanhã. O Pedro vai ajudar-me com as caixas…

A avó levantou-se de rompante, empurrando a cadeira para trás.

— Não se preocupem! Eu trato de arranjar onde ficar. Não quero ser estorvo para ninguém! — E saiu, batendo a porta do quarto.

Ficámos as duas em silêncio. A Matilde olhou para mim, os olhos brilhando de ansiedade e culpa.

— Achas que ela vai ficar bem? — murmurou.

Suspirei. Não sabia responder. Desde que o avô morreu, há três anos, a avó Leonor tornou-se o pilar da casa. Era ela quem cozinhava, quem cuidava do jardim, quem nos contava histórias à noite quando éramos pequenas. Agora, com o casamento da Matilde a aproximar-se e as obras intermináveis no apartamento dela, tudo parecia desmoronar-se.

Naquela noite, ouvi a avó chorar baixinho no quarto. Senti-me dividida entre o dever de ajudar a minha irmã e o medo de magoar quem sempre cuidou de nós. Lembrei-me das tardes em que a avó me ensinava a fazer tricô, das histórias sobre a infância dela em Trás-os-Montes, das gargalhadas à volta da lareira nos Natais passados.

No dia seguinte, tentei falar com ela.

— Avó…

Ela estava sentada na varanda, olhando para o jardim onde as roseiras começavam a florir.

— Mariana, eu sei que já não sou nova. Sei que às vezes atrapalho mais do que ajudo. Mas esta casa… é tudo o que me resta.

Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão.

— Não és um estorvo. Nunca foste. Só estou perdida… Quero ajudar a Matilde, mas não quero magoar-te.

Ela sorriu tristemente.

— A vida é feita de escolhas difíceis. Quando era nova, também tive de escolher entre ficar com os meus pais ou ir atrás do teu avô para Lisboa. Nunca me arrependi… mas doeu.

Nesse momento percebi: não havia solução perfeita. Alguém ia sair magoado.

À tarde, reuni coragem e chamei a Matilde para conversar.

— Matilde, precisamos de encontrar uma solução que não deixe a avó triste. Não podemos simplesmente pedir-lhe para sair do quarto dela…

Ela mordeu o lábio inferior.

— Eu sei… mas onde é que eu fico? O Pedro já está em casa dos pais dele e eu não tenho dinheiro para um hotel até ao casamento.

Ficámos as duas a pensar. De repente lembrei-me:

— E se ficasses comigo no meu quarto? Não é grande coisa, mas pelo menos não tiramos o espaço à avó.

Matilde hesitou.

— Achas mesmo que conseguimos? São só duas semanas…

Sorri-lhe.

— Já sobrevivemos a verões inteiros partilhando cama na casa da praia. Duas semanas passam num instante.

No jantar dessa noite, anunciei a decisão à avó. Ela olhou para mim com olhos marejados de lágrimas e apertou-me a mão por baixo da mesa.

Mas os problemas não acabaram aí. Com duas irmãs adultas a partilhar um quarto minúsculo, os conflitos começaram logo na primeira noite: discussões sobre quem ficava com o lado da janela, roupa espalhada pelo chão, horários diferentes para acordar e adormecer. A tensão era palpável.

Uma noite, depois de uma discussão acesa sobre o vestido do casamento (a Matilde queria experimentar todos os acessórios possíveis às três da manhã), saí disparada para o corredor e dei de caras com a avó Leonor sentada na sala escura.

— Não é fácil crescer, pois não? — disse ela suavemente.

Sentei-me ao lado dela e desatei a chorar.

— Sinto que estou sempre a falhar com alguém…

Ela passou-me a mão pelo cabelo como fazia quando eu era pequena.

— O segredo está em ouvir o coração. Às vezes não conseguimos agradar a todos. Mas se fores honesta contigo mesma e com os outros… talvez seja suficiente.

Na semana do casamento, tudo parecia acalmar. A Matilde estava radiante; a avó ajudava nos preparativos como podia; eu tentava manter tudo sob controlo. Mas na véspera do grande dia, ouvi um telefonema estranho entre a avó e uma amiga antiga:

— Sim, Rosa… depois do casamento vou pensar em ir para o lar. Aqui já não há espaço para mim…

O chão fugiu-me dos pés. Corri até ela.

— Avó! Não podes ir embora! Esta casa é tua!

Ela sorriu tristemente.

— Mariana, às vezes é preciso saber quando partir. Não quero ser peso morto na vida das minhas netas.

No dia seguinte, durante o casamento da Matilde — entre risos, lágrimas e fotografias — não consegui deixar de olhar para a avó Leonor sentada sozinha num canto do salão. Senti uma dor aguda no peito: será que alguma vez conseguiria retribuir tudo o que ela fez por nós?

Quando voltámos para casa naquela noite silenciosa, sentei-me ao lado dela no sofá e disse:

— Avó… prometo que nunca vais ficar sozinha enquanto eu cá estiver.

Ela sorriu e apertou-me contra si.

Agora escrevo estas linhas com o coração apertado: será possível fazer todos felizes sem nos perdermos pelo caminho? Quantas vezes sacrificamos quem mais amamos sem perceber? E vocês… já passaram por algo assim?