Entre o Amor de Mãe e o Peso da Culpa: A História de Dona Amélia

— Por favor, Helena, só quero vê-los por uns minutos. — A minha voz tremia, e eu sentia o rosto arder de vergonha enquanto segurava o telemóvel com força. Nunca pensei que um dia teria de pedir autorização à minha ex-nora para ver os meus próprios netos. Mas ali estava eu, Dona Amélia, 62 anos, reformada da Caixa Geral, com as mãos suadas e o coração apertado.

Do outro lado da linha, Helena suspirou. — Dona Amélia, não é fácil para mim. O Ricardo… ele magoou-nos muito. Os meninos ainda perguntam pelo pai, e eu… — A voz dela falhou. Senti uma pontada no peito; conhecia aquela dor.

Ricardo era o meu único filho. Sempre foi impulsivo, mas nunca pensei que fosse capaz de abandonar a família por uma paixão passageira. Tudo começou há dois anos, numa noite de Natal. Helena tinha convidado a amiga de infância, Vera, para passar a consoada connosco. Vera era recém-divorciada, cheia de histórias tristes e um sorriso encantador. Eu reparei logo nos olhares trocados entre ela e o Ricardo, mas preferi ignorar. Quem sou eu para julgar?

— Mãe, não te preocupes — disse-me ele semanas depois, quando comecei a notar as ausências e as mensagens escondidas no telemóvel. — Só estou a ajudar a Vera a ultrapassar uma fase difícil.

Acreditei nele. Sempre acreditei no meu filho. Mas a verdade veio ao de cima depressa demais: Vera engravidou e o Ricardo saiu de casa sem olhar para trás. Helena ficou sozinha com dois meninos pequenos e um coração despedaçado.

A minha casa tornou-se fria e silenciosa. O Ricardo vinha pouco cá; quando vinha, era só para buscar roupa ou dinheiro emprestado. Eu sentia raiva dele, mas também sentia pena. Era meu filho, afinal. Mas cada vez que olhava para Helena — aquela mulher forte, que nunca me faltou ao respeito nem me fechou a porta — sentia-me ainda mais pequena.

— Dona Amélia, eu não quero afastá-la dos meninos — disse Helena ao telefone, interrompendo os meus pensamentos. — Mas preciso que compreenda: eles estão confusos. O Ricardo quase não aparece. E quando aparece… só complica.

— Eu sei — respondi baixinho. — Sei que ele errou. Sei que não tem desculpa. Mas eles são tudo o que me resta.

Houve um silêncio pesado do outro lado da linha. Depois ouvi um fungar discreto.

— Pode vir cá amanhã à tarde — disse ela por fim. — Mas só se prometer que não vai falar do pai deles.

— Prometo — respondi sem hesitar.

Desliguei o telefone com as mãos trémulas. Sentei-me na poltrona da sala e olhei para as fotografias na estante: o casamento do Ricardo e da Helena, os batizados dos meninos, as férias em Vila Nova de Milfontes. Tudo parecia tão distante agora.

Naquela noite não consegui dormir. Lembrei-me do dia em que o Ricardo nasceu: foi um parto difícil, quase morremos os dois. Lembrei-me das noites em claro quando ele era bebé, das birras na escola primária, das primeiras namoradas que me faziam ciúmes. Sempre fui mãe galinha, talvez até demais. Talvez tenha sido esse o meu erro: proteger tanto que ele nunca aprendeu a enfrentar as consequências dos próprios atos.

No dia seguinte vesti-me com cuidado: blusa azul-escura, calças pretas, cabelo preso num coque apertado. Levei um bolo de laranja para os meninos e um saco com brinquedos antigos do Ricardo. Quando cheguei à porta da casa da Helena, hesitei antes de tocar à campainha.

Ela abriu a porta com um sorriso cansado.

— Olá, Dona Amélia.

— Olá, Helena. Obrigada… obrigada por me receber.

Os meninos vieram a correr: o João já com sete anos, a Matilde com cinco. Atiraram-se para os meus braços e senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto sem conseguir evitar.

— Avó! — gritaram em uníssono.

Brincámos no tapete da sala durante horas. Helena ficou na cozinha a preparar o lanche; percebi que precisava daquele tempo sozinha tanto quanto eu precisava dos meus netos.

Quando chegou a hora de ir embora, abracei-os com força.

— Vão portar-se bem? — perguntei-lhes baixinho.

— Sim, avó! — responderam eles.

Helena acompanhou-me até à porta.

— Obrigada por não ter falado do Ricardo — disse ela em voz baixa.

— Eu só quero o melhor para eles… e para ti também — respondi sinceramente.

Ela sorriu tristemente.

— Sabe… às vezes penso que devia odiar-vos aos dois. Mas depois olho para os meninos e percebo que não vale a pena carregar esse peso.

Fiquei sem palavras. Queria pedir desculpa por tudo o que o meu filho lhe fez, mas sabia que nenhuma palavra apagaria aquela dor.

Nos meses seguintes tentei ver os meninos sempre que podia. O Ricardo continuava ausente: ora aparecia com promessas vazias de mudar de vida, ora desaparecia durante semanas sem dar notícias. Vera teve o bebé — uma menina chamada Beatriz — e eu fui vê-la ao hospital por obrigação moral, mas não consegui sentir nada além de tristeza e culpa.

Uma tarde encontrei o Ricardo sentado no banco do jardim perto da minha casa. Estava magro, olheiras fundas e olhar perdido.

— Mãe… — murmurou ele quando me aproximei.

Sentei-me ao lado dele em silêncio.

— Estraguei tudo, não estraguei? — perguntou ele com voz embargada.

Olhei-o nos olhos e vi ali o menino assustado que criei sozinha depois do pai dele morrer num acidente de mota.

— Estragaste — respondi sem rodeios. — Mas ainda podes tentar consertar alguma coisa.

Ele abanou a cabeça.

— A Vera não me quer em casa. Diz que sou um fracasso como homem e como pai. E a Helena… nem consigo olhar para ela sem sentir vergonha.

Apertei-lhe a mão com força.

— O perdão não se pede só aos outros; pede-se também a nós próprios. Mas tens de começar por assumir as tuas responsabilidades.

Ele chorou baixinho durante minutos intermináveis. Eu chorei com ele; chorei pelo filho perdido, pela família desfeita, pelos netos que cresceriam sem pai presente.

Os meses passaram devagarinho. Helena arranjou trabalho numa pastelaria do bairro; os meninos começaram a sorrir mais vezes; eu fui aprendendo a viver com menos ilusões e mais saudade.

Um dia encontrei Helena na mercearia.

— Está tudo bem? — perguntei-lhe enquanto ela pagava as compras.

Ela sorriu com sinceridade pela primeira vez em muito tempo.

— Está melhor do que esperava. Sabe… aprendi a ser feliz sozinha. E os meninos estão bem; isso é o mais importante.

Fiquei feliz por ela — verdadeiramente feliz — mesmo sabendo que o meu filho era responsável por tanto sofrimento na vida daquela mulher corajosa.

Hoje olho para trás e pergunto-me: onde foi que falhei? Será que amar demais pode ser tão perigoso quanto amar de menos? E vocês… já sentiram este peso no peito entre o amor incondicional e a culpa impossível de apagar?