Entre Duas Mães: O Meu Coração Rasgado Entre o Dever e o Amor
— Não é assim que se faz, Mariana! — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. Eu segurava o biberão com mãos trémulas, tentando acalmar o pequeno João, que chorava sem parar desde as cinco da manhã. — Já te disse mil vezes, tens de aquecer mais o leite! — insistia ela, impaciente.
Do outro lado da porta, ouvia-se a televisão da sala, onde a minha sogra, Dona Lurdes, resmungava sobre o preço do pão e a falta de respeito dos jovens de hoje. O Rui, meu marido, ainda dormia no quarto, alheio ao caos que se instalara na nossa casa desde que o João nasceu. Eu sentia-me sozinha, esmagada entre duas mulheres que pareciam competir pelo título de melhor avó — ou talvez pela autoridade sobre mim.
— Mariana, não ligues à tua mãe. O João está bem — dizia Dona Lurdes quando eu entrava na sala, mas logo acrescentava: — No meu tempo, os bebés dormiam no quarto dos pais até aos três anos. Não percebo essa mania de quereres independência tão cedo.
Eu queria gritar. Queria fugir. Mas não podia. O Rui tinha perdido o emprego há três meses e eu estava de licença de maternidade. O dinheiro escasseava e as contas acumulavam-se na gaveta da cozinha. As duas mães tinham vindo “ajudar”, mas a verdade é que só tornavam tudo mais difícil.
Naquela tarde, enquanto embalava o João no colo, ouvi a discussão começar na cozinha:
— Ela não sabe cuidar do filho! — dizia a minha mãe, num sussurro alto demais para ser discreto.
— E a senhora sabe? — retorquiu Dona Lurdes. — No tempo dela nem havia fraldas descartáveis!
Senti as lágrimas a subir-me aos olhos. O João olhou para mim com aqueles olhos grandes e inocentes, como se me perguntasse porque chorava a mãe dele. Eu não sabia responder.
O Rui acordou tarde nesse dia. Quando entrou na sala, olhou para mim e para as nossas mães com um ar cansado.
— Outra vez? Não podem parar de discutir um bocadinho? — perguntou ele, sem energia.
— Se tu ajudasses mais, talvez não fosse preciso! — atirou a minha mãe.
— O Rui faz o que pode! — defendeu Dona Lurdes.
Eu sentia-me invisível. Como se fosse apenas um campo de batalha para as frustrações dos outros. O João chorava outra vez. Fui para o quarto e fechei a porta atrás de mim.
Na penumbra do quarto, sentei-me na cama com o João ao colo e deixei as lágrimas correrem livremente pelo rosto. Senti-me uma criança outra vez, perdida entre os gritos dos adultos. Lembrei-me do meu pai, que morreu quando eu tinha dez anos. Ele era o único que conseguia acalmar a minha mãe. Agora era eu quem tinha de ser forte.
Os dias passavam lentos e iguais. As discussões tornaram-se rotina. A minha mãe criticava tudo: a forma como vestia o João, como limpava a casa, até como falava com o Rui. Dona Lurdes não ficava atrás: implicava com as refeições, com os horários do bebé, com a minha falta de paciência.
O Rui começou a sair mais vezes à noite. Dizia que ia procurar trabalho ou encontrar-se com amigos para “desanuviar”. Eu sabia que era mentira. Uma noite, depois de adormecer o João, fui à janela e vi-o entrar no carro do Miguel, um amigo dele que nunca gostei. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
No dia seguinte, tentei falar com ele:
— Rui, precisamos conversar.
Ele suspirou fundo e sentou-se à mesa da cozinha.
— Mariana, eu não aguento mais isto. As nossas mães estão sempre em guerra e tu… tu já não és a mesma.
— Eu? Como é que podia ser a mesma? Tens ideia do que é estar aqui sozinha com elas? Com um bebé nos braços e contas por pagar?
Ele levantou-se bruscamente.
— Achas que é fácil para mim? Perdi o emprego! Sinto-me um inútil!
As lágrimas voltaram aos meus olhos. Queria abraçá-lo, mas ele afastou-se.
— Preciso de espaço — disse ele antes de sair porta fora.
Fiquei ali sentada, sozinha na cozinha fria, ouvindo as vozes abafadas das nossas mães na sala. Senti-me pequena, esmagada pelo peso das expectativas de todos menos das minhas próprias.
Naquela noite sonhei com o meu pai. Ele sorria para mim e dizia: “Mariana, tens de ser tu a decidir quem queres ser.” Acordei com uma sensação estranha no peito — uma mistura de medo e esperança.
No dia seguinte tomei uma decisão. Liguei à minha mãe e pedi-lhe para voltar para casa dela por uns dias.
— Mas Mariana! O João precisa de mim!
— Mãe, eu preciso de espaço. Por favor.
Ela ficou magoada, mas acabou por aceitar. Depois fui ter com Dona Lurdes:
— Dona Lurdes, agradeço tudo o que tem feito por nós, mas acho melhor ir descansar uns dias a casa da sua irmã em Setúbal.
Ela resmungou, mas acabou por ir também.
De repente a casa ficou silenciosa. Só eu e o João. Sentei-me no sofá com ele ao colo e chorei tudo o que tinha guardado durante meses.
Quando o Rui chegou a casa nessa noite encontrou-me assim: olhos vermelhos, cabelo despenteado, pijama velho.
— O que aconteceu?
— Mandei as nossas mães embora — disse-lhe simplesmente.
Ele olhou para mim como se visse uma estranha.
— E agora?
— Agora somos só nós os três. Ou tentamos juntos ou cada um segue o seu caminho.
Ele sentou-se ao meu lado em silêncio. Ficámos assim muito tempo sem dizer nada.
Os dias seguintes foram difíceis mas libertadores. Aprendi a ouvir o João sem interferências externas. Aprendi a confiar em mim mesma como mãe. O Rui começou a ajudar mais em casa e procurou trabalho com mais empenho. Tivemos muitas conversas duras sobre o nosso casamento — sobre mágoas antigas e sonhos adiados.
As nossas mães ligavam todos os dias no início, preocupadas ou ofendidas. Aos poucos foram aceitando que precisávamos do nosso espaço para crescer como família.
Um dia sentei-me à mesa com o Rui depois de adormecer o João e perguntei-lhe:
— Achas que ainda conseguimos ser felizes?
Ele olhou para mim com ternura e respondeu:
— Se formos honestos um com o outro e não deixarmos ninguém meter-se entre nós… talvez sim.
Hoje olho para trás e vejo como foi difícil cortar esse cordão invisível que me prendia às expectativas dos outros. Ainda tenho medo às vezes — medo de falhar como mãe ou como mulher. Mas aprendi que só posso ser feliz se ouvir a minha própria voz.
E vocês? Já sentiram esse peso das expectativas familiares? Como encontraram coragem para serem vocês mesmos?