Entre Dois Fogos: O Peso das Escolhas
— Não me olhes assim, Leonor! — A voz do meu pai ecoou pela sala, cortando o silêncio como uma navalha. — Não reconheço a filha que criei!
A minha mãe, sentada à mesa, apertava o lenço entre os dedos, os olhos marejados de lágrimas. O meu irmão, Tiago, fitava o chão, como se ali encontrasse as respostas para todos os nossos problemas. Eu, de pé junto à porta, sentia o coração bater tão forte que temi que todos pudessem ouvir.
— Pai, eu só queria… — tentei explicar, mas ele interrompeu-me com um gesto brusco.
— Quiseste demais! Sempre quiseste demais! — gritou ele, a voz embargada pela raiva e pelo cansaço.
Naquele momento, percebi que a minha família estava à beira de um abismo. E tudo porque eu tinha tomado uma decisão sem pensar nas consequências. Tinha aceitado um emprego num bar do Bairro Alto, contra a vontade deles. Para mim, era liberdade; para eles, era perdição.
Lembro-me da primeira noite no bar. As luzes néon refletiam-se nas garrafas alinhadas atrás do balcão. Os clientes riam alto, cheios de histórias e segredos. Senti-me viva como nunca antes. Mas também senti medo — medo de me perder naquela vida que parecia tão fácil e tão perigosa.
O Tiago foi o primeiro a afastar-se. Sempre fora o filho exemplar: estudioso, trabalhador, nunca dava problemas. Quando soube do meu novo emprego, limitou-se a dizer:
— Vais arrepender-te, Leonor. Não é esse o caminho.
Mas eu não quis ouvir. Achava que sabia tudo. Achava que podia controlar o fogo dentro de mim.
As semanas passaram e comecei a chegar cada vez mais tarde a casa. A minha mãe esperava-me acordada, sentada na sala escura, com o olhar perdido na janela.
— Leonor, filha… — murmurava ela. — O teu pai não dorme. O teu irmão já nem fala contigo. Isto não é vida.
Eu respondia sempre com impaciência:
— Mãe, sou adulta! Preciso de viver à minha maneira!
Mas por dentro sentia-me cada vez mais sozinha. Os clientes do bar tornaram-se a minha nova família: o João das piadas fáceis, a Rita das histórias tristes, o senhor Manuel que bebia para esquecer a mulher que partiu. Todos eles tinham algo em comum: fugiam de alguma coisa.
Foi numa dessas noites que conheci o Miguel. Tinha um sorriso fácil e olhos que pareciam ver tudo. Aproximou-se do balcão e disse:
— Não devias estar aqui.
Sorri, desafiadora:
— E tu? O que fazes aqui então?
Ele encolheu os ombros:
— Às vezes precisamos de nos perder para nos encontrarmos.
Aquelas palavras ficaram comigo. Começámos a conversar todas as noites. O Miguel falava-me dos sonhos dele: queria abrir uma livraria, viajar pelo mundo, escrever um livro sobre pessoas comuns. Eu falava-lhe dos meus medos: dececionar a família, não ser suficiente, perder-me de vez.
Uma noite, depois do fecho, saímos juntos para ver o nascer do sol junto ao Tejo. O silêncio da cidade era reconfortante. Senti-me em paz pela primeira vez em meses.
Mas a paz durou pouco. Uma manhã, ao chegar a casa, encontrei o meu pai sentado à mesa da cozinha, com uma carta na mão.
— Leonor — disse ele, a voz cansada — recebi isto da escola. Faltaste às aulas outra vez?
Eu baixei os olhos. Tinha deixado de ir às aulas há semanas. O trabalho no bar ocupava-me as noites e o sono roubava-me os dias.
— Não sei o que fazer contigo — murmurou ele. — A tua mãe chora todas as noites. O Tiago já nem pergunta por ti.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Sempre foi assim! O Tiago é perfeito e eu sou sempre o problema! Nunca me ouviram! Nunca quiseram saber dos meus sonhos!
O meu pai levantou-se de repente e atirou a cadeira ao chão.
— Chega! Ou mudas de vida ou sais desta casa!
Corri para o quarto e tranquei-me lá dentro. Chorei até não ter mais lágrimas. Senti-me traída por todos — mas acima de tudo por mim mesma.
Nos dias seguintes, tentei falar com o Tiago. Ele evitava-me sempre.
— Não tenho nada para te dizer — disse ele finalmente, num tom frio que nunca lhe conhecera. — Escolheste esse caminho sozinha.
O Miguel percebeu logo que algo não estava bem.
— Tens de decidir quem queres ser, Leonor — disse ele uma noite no bar vazio. — Não podes viver entre dois fogos para sempre.
Essas palavras ecoaram na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar nas pequenas coisas: as olheiras da minha mãe, o silêncio pesado do meu pai, a ausência do Tiago à mesa do jantar.
Uma noite, depois do trabalho, fui até ao miradouro da Graça e sentei-me sozinha a olhar para as luzes da cidade. Senti-me pequena diante daquela imensidão. Lembrei-me das palavras do Miguel: “Às vezes precisamos de nos perder para nos encontrarmos”.
No dia seguinte tomei uma decisão: ia deixar o bar e tentar recuperar a confiança da minha família. Fui falar com o patrão e expliquei-lhe tudo.
— Tens coragem — disse ele apenas. — Nem todos conseguem sair quando ainda têm escolha.
Voltei para casa com o coração apertado. A minha mãe abraçou-me sem dizer uma palavra. O meu pai olhou-me nos olhos e vi ali um brilho de esperança que há muito não via.
O Tiago demorou semanas a perdoar-me. Mas um dia entrou no meu quarto e disse:
— Todos erramos, Leonor. O importante é sabermos voltar atrás quando ainda temos tempo.
Hoje estudo enfermagem e trabalho num lar de idosos em Alfama. Às vezes ainda sinto saudades daquela liberdade selvagem do Bairro Alto, mas aprendi que há fogos que só servem para nos consumir por dentro.
O Miguel? Seguiu viagem para o Porto e abriu mesmo uma pequena livraria junto à Ribeira. Ainda trocamos mensagens de vez em quando. Ele diz que encontrou finalmente paz entre livros e histórias alheias.
Às vezes pergunto-me: quantas vidas se perdem por não sabermos ouvir quem nos ama? Quantas vezes deixamos que o orgulho fale mais alto do que o coração? E vocês… já sentiram esse fogo dentro de vocês? Como fizeram para não se queimarem?