Entre as Sombras do Desalento: A Minha Luta por um Sonho Esquecido

— Benjamin! — gritei pela terceira vez, já com a voz embargada de cansaço e frustração. O eco do meu próprio chamado devolveu-me apenas o silêncio. Oiço, ao longe, o som abafado da televisão na sala, mas nem um movimento, nem uma resposta. Senti o peso dos sacos de compras a cortar-me os dedos, mas não larguei. Arrastei-os até à cozinha, cada passo uma pequena batalha contra o desânimo.

Enquanto pousava as compras na bancada, respirei fundo. O cheiro a detergente misturava-se com o aroma das maçãs frescas e do pão ainda quente. Mas nada disso me confortava. Olhei para as minhas mãos — vermelhas, marcadas — e pensei: “É isto a minha vida? Trabalho oito horas num escritório onde ninguém me conhece pelo nome, faço compras sozinha, cozinho para dois e sinto-me invisível.”

Oiço finalmente passos pesados no corredor. Benjamin aparece à porta da cozinha, olhos semicerrados, cabelo despenteado.

— O que foi agora, Cristina? — pergunta, sem sequer olhar para mim.

A raiva subiu-me à garganta como um grito engasgado.

— Precisas mesmo que te peça ajuda para tudo? Não vês que estou exausta?

Ele encolhe os ombros.

— Também tive um dia difícil. Não podes esperar que faça tudo contigo.

Fiquei a olhar para ele, incrédula. Era sempre assim: cada um fechado no seu cansaço, como se estivéssemos em lados opostos de uma trincheira. Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face. Não era só pelo peso das compras ou pelo jantar por fazer. Era por tudo aquilo que eu deixara morrer dentro de mim.

Naquela noite, depois do jantar servido em silêncio e dos pratos lavados com mãos trémulas, sentei-me à janela do nosso pequeno apartamento em Almada. Olhei para as luzes da cidade e deixei-me afundar nos meus próprios pensamentos.

Lembrei-me de quando era miúda e sonhava ser escritora. Passava horas a inventar histórias no velho caderno azul que a minha mãe me dera. Mas a vida foi-se impondo: primeiro o curso de Gestão porque “dá emprego”, depois o estágio numa empresa de seguros porque “é seguro”, depois o contrato efetivo porque “não se pode arriscar”. E agora aqui estava eu: 32 anos, um emprego que detestava, um namorado ausente e uma vida que não era minha.

No dia seguinte, acordei antes do despertador. O Benjamin ainda dormia, ressonando baixinho. Fui tomar banho e olhei-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo apanhado à pressa, olhos sem brilho. Senti uma vontade súbita de chorar mas engoli em seco. Não podia continuar assim.

No escritório, o ambiente era sempre igual: colegas que falavam apenas do tempo ou do Benfica, chefes que só apareciam para cobrar resultados, luzes brancas e frias a iluminar papéis sem fim. Sentei-me na minha secretária e abri o email: mais reclamações de clientes, mais tarefas sem sentido.

À hora de almoço, sentei-me sozinha no refeitório com a minha sandes de queijo flamengo. Olhei à volta e vi rostos iguais ao meu: cansados, resignados. Foi então que ouvi a voz da Marta, uma colega do departamento ao lado.

— Cristina, estás bem? Pareces tão distante ultimamente…

Sorri-lhe sem vontade.

— Só estou cansada, Marta. Às vezes penso se é isto que quero para mim.

Ela suspirou.

— Eu também penso nisso todos os dias… Mas olha, temos emprego, não é? Há quem esteja pior.

Essas palavras ficaram-me a ecoar na cabeça o resto da tarde: “Há quem esteja pior”. Era esse o consolo? Aceitar uma vida medíocre porque podia ser pior?

Quando cheguei a casa nesse dia, Benjamin estava no sofá a jogar PlayStation. Nem levantou os olhos quando entrei.

— Olá — murmurei.

— Olá — respondeu ele, absorto no jogo.

Fui para o quarto e sentei-me na cama. Peguei no meu velho caderno azul — sim, ainda o guardava numa gaveta — e comecei a escrever:

“Hoje decidi que não vou aceitar menos do que mereço. Não quero ser mais uma sombra nesta cidade cinzenta. Quero viver uma vida com sentido, mesmo que isso signifique começar do zero.”

Naquela noite dormi pouco mas sonhei muito. Sonhei com livros publicados, com viagens pelo país a dar palestras sobre escrita criativa, com leitores emocionados pelas minhas palavras.

No fim de semana seguinte fui visitar os meus pais em Setúbal. A minha mãe recebeu-me com um abraço apertado e um olhar preocupado.

— Estás tão magra, filha… Está tudo bem?

Sentei-me à mesa da cozinha enquanto ela preparava chá.

— Mãe… Eu não estou feliz no trabalho. Sinto que estou a desperdiçar a minha vida.

Ela pousou a chávena e olhou-me nos olhos.

— Eu sempre soube que tu eras diferente, Cristina. Mas sabes como é… A vida não é fácil para ninguém. Tens emprego fixo, tens casa… Não podes arriscar tudo por um sonho.

Senti um nó na garganta.

— Mas mãe… E se eu nunca tentar? E se passar a vida toda arrependida?

O meu pai entrou na cozinha nesse momento e ouviu parte da conversa.

— Sonhos são bonitos mas não pagam contas — disse ele num tom seco.

A discussão prolongou-se durante horas. A minha mãe tentava acalmar-nos mas eu sentia-me cada vez mais sufocada pela falta de compreensão deles.

Regressei a Almada com o coração apertado mas também com uma determinação nova. Se ninguém acreditava em mim, teria de ser eu a acreditar.

Nas semanas seguintes comecei a escrever todos os dias depois do trabalho. Benjamin resmungava:

— Vais passar as noites todas agarrada a esse caderno? Já nem falas comigo!

— Preciso disto para não enlouquecer — respondi-lhe num tom mais duro do que queria.

Ele levantou-se do sofá e atirou o comando para cima da mesa.

— E eu? Não contas comigo para nada?

Olhei para ele e percebi que estávamos cada vez mais distantes. O silêncio entre nós tornou-se ensurdecedor.

No trabalho as coisas também pioraram. O meu chefe chamou-me ao gabinete:

— Cristina, tenho reparado que anda distraída… Preciso de alguém focado nesta equipa.

Olhei-o nos olhos e disse:

— Eu já não pertenço aqui.

Ele ficou surpreendido mas não insistiu. Saí do gabinete com as pernas a tremer mas com o coração leve pela primeira vez em anos.

Nessa noite contei tudo ao Benjamin.

— Despedi-me — disse-lhe baixinho.

Ele ficou branco como a cal da parede.

— Estás maluca? Como é que vamos pagar as contas?

— Vou arranjar outro trabalho qualquer enquanto escrevo o meu livro. Não posso continuar a viver assim!

Ele abanou a cabeça em negação.

— Isto é egoísmo teu! Só pensas em ti!

Chorei durante horas nessa noite. Senti-me sozinha como nunca antes. Mas também senti uma força nova dentro de mim: pela primeira vez estava a lutar por mim própria.

Os meses seguintes foram duros: trabalhei num café durante o dia e escrevia à noite; vendi livros usados online para pagar as contas; perdi amigos que não entendiam as minhas escolhas; Benjamin acabou por sair de casa sem dizer adeus.

Mas também ganhei coisas novas: conheci pessoas incríveis num grupo de escrita criativa em Lisboa; publiquei contos em revistas digitais; recebi emails de leitores anónimos emocionados com as minhas palavras; voltei a sorrir ao espelho.

Hoje escrevo estas linhas sentada num banco do Jardim da Estrela, rodeada pelo cheiro das tílias e pelo riso das crianças. Ainda não sou famosa nem rica — mas sou dona da minha vida.

Pergunto-me muitas vezes: quantos de nós vivem presos ao medo de arriscar? Quantos sonhos morrem todos os dias porque nos convencem de que “há quem esteja pior”? E vocês — estão dispostos a aceitar menos do que merecem?