Entre as Cinzas da Memória: Uma História de Fé e Superação

— Mãe, onde está o álbum das fotografias do avô? — perguntei, com a voz embargada, enquanto o cheiro acre do fumo ainda pairava no ar. O silêncio dela foi mais pesado do que qualquer resposta. O fogo tinha levado tudo: as cartas antigas, os desenhos da escola, as fotografias amareladas dos verões em Vila Nova de Milfontes. Senti um vazio tão grande que parecia não caber dentro do peito.

Naquela noite, sentámo-nos todos na sala improvisada da casa da tia Lurdes. O meu pai, sempre tão forte, olhava para as mãos como se procurasse nelas as respostas que nunca teve. A minha irmã mais nova, Inês, soluçava baixinho, agarrada ao velho terço da avó Rosa. Eu queria gritar, perguntar a Deus porquê nós, porquê agora, mas só consegui fechar os olhos e rezar em silêncio: “Senhor, dá-nos força para suportar isto.”

A tragédia começou numa madrugada fria de janeiro. O aquecedor antigo, herdado do tio Joaquim, entrou em curto-circuito. O fogo espalhou-se rápido pelas divisões de madeira. Quando acordei com o cheiro a queimado e os gritos da minha mãe, já era tarde demais para salvar alguma coisa. Saímos todos descalços, embrulhados em mantas, enquanto as chamas devoravam o que restava da nossa história.

Os dias seguintes foram um nevoeiro de burocracias, visitas dos bombeiros e olhares de pena dos vizinhos. “Coitados, perderam tudo”, sussurravam à nossa passagem. Mas o que mais me doía era ver a minha mãe sentada à janela, olhando para o vazio, como se procurasse no horizonte as memórias que o fogo levou.

— Não chores, mãe — tentei consolar-lhe uma noite. — Ainda temos uns aos outros.

Ela sorriu, mas os olhos continuaram tristes. — As coisas podem-se comprar outra vez, mas as memórias… essas não voltam.

Foi nesse momento que percebi que não era só a casa que tínhamos perdido. Era a nossa identidade, os marcos da nossa existência enquanto família. Senti-me impotente. O meu pai tentava manter-se ocupado com telefonemas e papéis do seguro, mas à noite ouvia-o chorar baixinho no quarto.

A tia Lurdes sugeriu que fôssemos à missa de domingo. “A fé pode ajudar-vos a encontrar algum consolo”, disse ela. Eu hesitei — sempre fui céptica — mas acabei por ir, mais por respeito à minha mãe do que por convicção própria.

Na igreja de São Domingos, o padre Manuel falou sobre a importância de confiar nos desígnios de Deus mesmo quando tudo parece perdido. “Às vezes”, disse ele, “Deus permite que passemos pelo fogo para nos mostrar que somos feitos de muito mais do que aquilo que possuímos.”

Essas palavras ecoaram em mim durante dias. Comecei a rezar todas as noites com a Inês. No início era só um ritual vazio, mas aos poucos fui sentindo uma paz estranha a invadir-me. Não era resignação — era uma força silenciosa que me empurrava para a frente.

Aos poucos, começámos a reconstruir a nossa vida. Os vizinhos organizaram uma recolha de roupas e móveis usados. A Junta de Freguesia ajudou-nos a encontrar uma casa temporária. A minha mãe voltou a sorrir quando encontrou uma caixa com algumas cartas antigas que tinham ficado na garagem da tia Lurdes.

Mas nem tudo foi fácil. O meu pai entrou numa espiral de silêncio e afastamento. Passava horas fora de casa, evitava conversas e recusava-se a ir à missa connosco. Uma noite, ouvi-o discutir com a minha mãe:

— Não quero ouvir falar de Deus! Se Ele existisse mesmo, não nos teria deixado passar por isto!

A minha mãe chorou muito nessa noite. Eu abracei-a e rezei com ela até adormecer.

O tempo foi passando e as feridas começaram a sarar devagarinho. Um dia, enquanto arrumávamos os poucos pertences salvos do incêndio, encontrei uma fotografia meio chamuscada do casamento dos meus pais. Mostrei-a ao meu pai e vi-lhe os olhos encherem-se de lágrimas.

— Lembras-te deste dia? — perguntei-lhe.

Ele assentiu em silêncio.

— Ainda temos isto — disse-lhe eu. — E temos uns aos outros.

Foi nesse momento que ele desabou. Chorou como nunca o tinha visto chorar antes. Depois disso, começou a ir connosco à missa outra vez. Não sei se encontrou Deus ali ou se apenas precisava de sentir-se parte de alguma coisa maior do que a dor dele.

A reconstrução da casa demorou meses. Cada parede erguida era uma vitória sobre o desespero. A comunidade ajudou-nos com tudo: desde móveis até refeições quentes nos dias mais difíceis. Aprendi que há uma força invisível na solidariedade das pessoas simples.

No primeiro Natal depois do incêndio, reunimo-nos todos na nova sala ainda cheirando a tinta fresca. A árvore era pequena e os enfeites improvisados, mas havia uma alegria genuína nos olhos da minha família.

— Este ano não temos presentes caros — disse o meu pai — mas temos algo mais importante: temos esperança.

A Inês pegou no terço da avó Rosa e sugeriu que rezássemos juntos antes da ceia. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me verdadeiramente grata por tudo o que ainda tínhamos.

Hoje olho para trás e percebo que foi nas noites mais escuras que encontrei a luz da fé. Não recuperei todas as memórias perdidas nas chamas, mas aprendi a criar novas com aqueles que amo.

Pergunto-me muitas vezes: será que teria encontrado esta força se não tivesse passado pelo fogo? E vocês? Já sentiram que perder tudo vos deu uma nova razão para acreditar?