Entre a Cidade e o Passado: O Preço de Voltar Atrás
— Achas mesmo que tens esse direito, Zoé? — perguntei, sentindo o sangue ferver-me nas veias. O silêncio pesado da cozinha da nossa mãe só era interrompido pelo tique-taque do relógio antigo pendurado na parede. Ela olhou-me de cima, com aquele ar de quem nunca saiu da aldeia e acha que tudo lhe pertence. — O direito? O direito de pedir que ajudes a família? Não é pedir demais, Henrique. Já chega de fugires para Lisboa sempre que as coisas apertam aqui.
A audácia dela era desconcertante. Eu, que há vinte e oito anos me tinha mudado para Lisboa para estudar Engenharia no Técnico, que trabalhei noites inteiras para pagar renda e propinas, agora era tratado como um forasteiro na minha própria casa. O cheiro a sopa de couve pairava no ar, misturado com a humidade das paredes velhas. A nossa mãe, sentada ao canto da mesa, mexia o rosário entre os dedos, sem dizer palavra.
— Não é fugir, Zoé. É viver a minha vida. Tu escolheste ficar, eu escolhi sair. Não me peças para abdicar de tudo o que construí — respondi, tentando manter a voz firme.
Ela bufou, cruzando os braços. — Sempre foste egoísta. Achas-te melhor do que nós só porque vives na cidade. Mas quando a mãe precisar mesmo, vais ver se não voltas com o rabo entre as pernas.
Aquela frase ficou-me cravada no peito como uma farpa. Saí dali sem olhar para trás, prometendo a mim mesmo que não voltaria tão cedo àquela casa onde cada canto me lembrava discussões antigas e sonhos adiados. No comboio de regresso a Lisboa, olhei pela janela e vi os campos dourados a passarem depressa demais — tal como os anos que deixei para trás.
Cheguei ao meu apartamento em Arroios já noite cerrada. O cheiro a café velho e livros empilhados era o meu refúgio. Sentei-me no sofá e deixei-me afundar nos pensamentos. Tinha 48 anos. Tinha uma vida feita aqui: amigos, trabalho, rotinas. Mas porquê é que cada regresso à aldeia me fazia sentir como um intruso?
Na manhã seguinte, acordei com o som insistente da campainha. Arrastei-me até à porta e vi o meu irmão Mário — sempre o pacificador — com um cesto de maçãs na mão e um sorriso tímido.
— Trouxe-te isto da mãe. E… queria falar contigo — disse ele, sem me encarar diretamente.
Deixei-o entrar. Sentámo-nos à mesa da cozinha, entre silêncios desconfortáveis e olhares fugidios.
— A Zoé não tem razão para te falar assim — começou ele, mexendo nas maçãs como se procurasse as palavras certas. — Mas sabes como ela é… sente-se sozinha ali.
— E eu? Não posso sentir-me sozinho aqui? — rebati, surpreendendo-me com a amargura na minha voz.
Mário suspirou. — A mãe está a piorar. Esconde-se, mas eu vejo. Esquece-se das coisas. Outro dia quase pôs fogo à cozinha… A Zoé está desesperada.
Senti um nó na garganta. A imagem da minha mãe, tão forte em tempos, agora frágil e esquecida… Mas porquê sempre eu a sacrificar tudo? Porque é que ninguém pergunta o que eu quero?
— Não posso vender o apartamento, Mário. É tudo o que tenho — disse baixinho.
Ele assentiu. — Ninguém te está a pedir isso… pelo menos eu não estou. Só queria que falasses com ela antes de cortares laços de vez.
Ficámos ali sentados em silêncio. Lembrei-me dos verões passados juntos no rio, das tardes em que roubávamos figos do quintal do senhor António e ríamos até nos doerem as barrigas. Onde é que tudo se perdeu?
Naquela noite não dormi. As palavras da Zoé martelavam-me na cabeça: “Sempre foste egoísta.” Será verdade? Será que fugir foi sempre mais fácil do que enfrentar as responsabilidades?
Passei os dias seguintes num torpor estranho. No trabalho, mal conseguia concentrar-me; os colegas notaram o meu silêncio inusitado. Uma tarde, a minha amiga Teresa convidou-me para jantar.
— Estás estranho, Henrique. O que se passa? — perguntou ela enquanto servia vinho.
Contei-lhe tudo: as discussões, a pressão para voltar, o medo de perder a minha vida aqui.
— Sabes… às vezes fugir também é uma forma de sobreviver — disse ela suavemente. — Mas talvez possas encontrar uma maneira de ajudar sem te perderes a ti próprio.
As palavras dela ficaram comigo. Liguei à Zoé nessa noite. Ela atendeu de mau humor.
— O que queres agora?
— Quero ajudar… mas não vou vender nada nem voltar a viver aí. Podemos encontrar outra solução? Talvez contratar alguém para ajudar a mãe? Eu posso ajudar com dinheiro…
Houve um silêncio longo do outro lado.
— Sempre achas que tudo se resolve com dinheiro… — murmurou ela.
— Não é isso! Só… não quero perder tudo aquilo por que lutei.
Ela desligou sem dizer mais nada.
Os dias passaram e ninguém me ligou da aldeia. Senti-me órfão de família ainda em vida. Comecei a questionar tudo: teria valido a pena sair? Teria sido melhor ficar e aceitar uma vida pequena mas unida?
Um mês depois recebi uma carta manuscrita da minha mãe — as letras trémulas mas reconhecíveis:
“Meu filho,
A vida não é fácil para ninguém. Cada um faz o melhor que pode com o que tem. Não quero ser peso para ti nem para os teus irmãos. Só quero paz entre vocês antes de partir.
Com amor,
Mãe”
Chorei como há muito não chorava. Liguei ao Mário e pedi-lhe para pôr o telemóvel em alta-voz quando estivesse com ela e com a Zoé. Falei-lhes do medo de perder as minhas raízes mas também do medo de perder quem sou.
— Talvez nunca consigamos entender-nos completamente — disse-lhes — mas não quero acabar sozinho nem deixar-vos sozinhos.
A conversa foi dura mas sincera. Ficou decidido contratar uma senhora da aldeia para ajudar a mãe; eu ajudaria financeiramente e visitaria mais vezes — sem pressões nem exigências impossíveis.
Hoje olho para trás e vejo como as feridas familiares podem ser profundas mas também como podem sarar devagarinho se houver vontade dos dois lados.
Pergunto-me: quantos de nós vivem presos entre dois mundos — o passado e o presente — sem saber onde realmente pertencem? Será possível conciliar quem fomos com quem somos agora? Gostava de saber como outros lidam com estas escolhas difíceis.