Encruzilhada aos Sessenta: O Recomeço de Maria em Lisboa
— Mãe, por favor, pensa bem. Eu não aguento mais sozinha. — A voz da Sofia ecoava pelo telefone, trémula, quase a chorar. Era já noite fechada em Aveiro e eu estava sentada à mesa da cozinha, com o rádio a murmurar fado ao fundo. O cheiro do café frio misturava-se com o peso das palavras dela.
Fechei os olhos e respirei fundo. Aos 63 anos, nunca pensei que teria de tomar uma decisão destas. A minha filha, divorciada há dois anos, lutava para criar o pequeno Tiago sozinha em Lisboa. O trabalho dela no hospital era incerto, os turnos mudavam todas as semanas e o ex-marido raramente aparecia. Eu sabia que ela precisava de mim. Mas deixar Aveiro? A casa onde vivi com o António durante quarenta anos? Onde cada canto tem uma memória dele, dos nossos filhos, das festas de Natal e dos domingos de chuva?
— Sofia, filha… — tentei responder com calma — eu entendo-te, mas não é assim tão simples. A minha vida está aqui. Os meus amigos, a minha igreja, até o jardim onde planto as minhas flores…
— Mãe! — interrompeu ela, agora já a chorar — Eu estou a pedir-te ajuda! Não vês que estou a afundar? Não tenho ninguém aqui! A mãe da Mariana disse que arranja trabalho para ti no lar onde ela trabalha. Não vais ficar sozinha. Por favor…
O silêncio caiu entre nós como uma pedra. Senti-me egoísta. Como podia hesitar? Mas também me sentia traída pela vida: depois de tantos anos a cuidar dos outros, agora era eu quem precisava de estabilidade.
Naquela noite não dormi. O António já não estava cá para me aconselhar. O meu filho mais velho, Miguel, vivia no Porto e raramente ligava. Sempre foi mais distante desde que casou com a Ana. Lembrei-me do dia em que ele me disse: “Mãe, tu preocupas-te demais com a Sofia. Ela tem de aprender a resolver os próprios problemas.” Mas como é que uma mãe vira costas à filha?
No dia seguinte fui ao café da Dona Lurdes, como sempre fazia às quartas-feiras. Ela percebeu logo que algo não estava bem.
— Então Maria, estás com cara de quem viu um fantasma…
— É a Sofia… quer que eu vá viver para Lisboa. Diz que precisa de mim.
A Dona Lurdes pousou o pano na bancada e olhou-me nos olhos.
— E tu? O que é que tu queres?
Fiquei sem resposta. O que eu queria? Queria tudo como antes: o António vivo, os filhos pequenos, a casa cheia de risos. Queria não ter de escolher entre mim e eles.
Durante dias andei perdida nos meus pensamentos. Falei com o padre Joaquim na missa de domingo.
— Maria, às vezes Deus pede-nos coragem para recomeçar — disse-me ele — mas também tens direito à tua paz.
A pressão aumentava. Sofia ligava todos os dias. O Miguel mandou uma mensagem seca: “Se fores para Lisboa, não contes comigo para nada.” Senti-me dividida entre os dois filhos.
Na véspera da decisão, sentei-me no quarto do António. Abri o armário e acariciei as camisas dele ainda penduradas. Falei baixinho:
— O que farias tu? Deixavas tudo por um filho? Ou ficavas por ti?
As lágrimas correram-me pelo rosto. Senti-me velha e inútil pela primeira vez na vida.
No dia seguinte fiz as malas. Não muitas — só o essencial: algumas roupas, fotografias dos netos, uma manta feita pela minha mãe. Antes de sair, fui ao jardim e arranquei um ramo de alfazema para levar comigo.
A viagem de comboio foi longa e silenciosa. Olhei pela janela as paisagens a mudarem: os campos verdes do norte a darem lugar ao bulício da cidade grande. O coração batia-me descompassado.
Sofia recebeu-me na estação com um abraço apertado e olhos vermelhos.
— Obrigada, mãe…
Nos primeiros dias em Lisboa senti-me perdida. A casa dela era pequena e barulhenta; Tiago chorava muito à noite e Sofia chegava exausta do hospital. No lar onde comecei a trabalhar conheci a Dona Emília, uma mulher de 80 anos cheia de histórias tristes.
— Sabe, Maria — disse-me ela um dia — nunca é tarde para mudar de vida. Mas custa muito deixar para trás quem fomos.
O trabalho era duro: levantar idosos da cama, dar banhos, ouvir lamentos e memórias partidas. Às vezes sentia raiva da Sofia por me ter puxado para esta nova vida sem perguntar se eu queria mesmo isto.
Uma noite ouvi-a discutir ao telefone com o ex-marido:
— Achas que é fácil? Achas? Nem imaginas o que é criar um filho sozinha! A minha mãe teve de vir porque tu não ajudas em nada!
Senti pena dela… mas também uma revolta surda. Será que eu era só um remendo para os buracos da vida dela?
Os meses passaram devagar. Comecei a fazer amizade com as outras cuidadoras do lar: a Carla, sempre pronta para rir; o Sr. Joaquim, que tocava acordeão nas festas; até comecei a gostar das rotinas novas.
Mas em casa as coisas pioraram. Sofia estava cada vez mais nervosa; Tiago adoeceu duas vezes; o dinheiro mal chegava ao fim do mês. Uma noite ela explodiu comigo:
— Mãe, não percebes nada! Não me ajudas como eu preciso! Só sabes criticar!
Fiquei gelada. Saí para a rua sem dizer nada e chorei no banco do jardim até de madrugada.
No dia seguinte escrevi uma carta ao Miguel:
“Filho,
Não sei se fiz bem em vir para Lisboa. Sinto-me perdida entre ser mãe e ser mulher. Sinto falta da minha casa, das minhas flores… Mas também vejo o quanto a tua irmã precisa de mim. Será que alguma vez vou conseguir agradar-vos aos dois?”
Miguel respondeu dias depois:
“Mãe,
Fizeste o que achaste melhor. Não te culpes tanto. Eu também tenho saudades tuas.”
A carta dele deu-me algum alívio. Comecei a perceber que talvez nunca haja uma resposta certa para estas escolhas.
Um ano depois ainda estou aqui em Lisboa. Tiago já vai à escola; Sofia arranjou um novo emprego melhor; eu continuo no lar e até já plantei alfazema num vaso na varanda.
Às vezes olho para trás e pergunto-me: teria sido mais feliz se tivesse ficado em Aveiro? Ou será que a felicidade está mesmo nestes sacrifícios silenciosos?
E vocês? Já tiveram de escolher entre vocês próprios e quem amam? Será possível encontrar paz no meio destas encruzilhadas?