Dez Anos de Silêncio: Quando o Ricardo Voltou, O Meu Mundo Desabou Outra Vez

— Não pode ser… — sussurrei, sentindo o coração a bater tão forte que temi que a minha filha, Leonor, ouvisse do quarto ao lado. A chuva batia furiosa nas janelas da nossa casa em Setúbal, e o trovão iluminou por um segundo a figura encharcada à porta. O meu corpo congelou. Dez anos. Dez anos sem uma palavra, sem uma carta, sem um sinal de vida do Ricardo. E agora, ali estava ele, como se tivesse ido só ali à esquina comprar pão.

— Maria… — a voz dele era rouca, quase irreconhecível, mas o nome soou-me como uma ferida aberta. — Preciso falar contigo.

Senti as pernas fraquejarem. O cheiro a terra molhada misturava-se com o perfume antigo dele, aquele aroma que nunca consegui apagar dos lençóis. O meu primeiro impulso foi fechar-lhe a porta na cara. Mas fiquei ali, paralisada, presa entre o passado e o presente.

— O que é que tu queres? — perguntei, tentando manter a voz firme. — Depois de tudo este tempo…

Ele baixou os olhos. — Sei que não tenho desculpa. Mas precisava de te ver. De ver a Leonor.

A raiva subiu-me à garganta como fel. — A Leonor não sabe quem tu és. Para ela, o pai morreu há muito tempo.

O silêncio caiu pesado entre nós. Lembrei-me da noite em que ele desapareceu. Da discussão violenta sobre dinheiro, das dívidas que ele escondia, das promessas quebradas. Lembrei-me de como fiquei sozinha com uma filha pequena e uma casa hipotecada. De como tive de pedir ajuda à minha mãe, à minha irmã Catarina, que nunca me perdoou por ter escolhido o Ricardo em vez do António, o namorado “certinho” da faculdade.

— Maria… — ele tentou tocar-me no braço, mas recuei instintivamente. — Eu mudei.

Ri-me, amarga. — As pessoas não mudam assim tão facilmente, Ricardo.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez. Vi ali o homem por quem me apaixonei aos 19 anos: impulsivo, apaixonado, mas também frágil e perdido.

— Deixa-me explicar…

Suspirei fundo. — Entra antes que os vizinhos vejam este espetáculo.

Fechei a porta atrás dele e conduzi-o até à sala. O relógio marcava quase meia-noite. Sentei-me na ponta do sofá, braços cruzados.

— Fala.

Ele hesitou antes de se sentar na poltrona onde costumava adormecer com a Leonor bebé ao colo.

— Fui um cobarde — começou. — Não consegui lidar com as dívidas. Devia dinheiro a gente perigosa… Tive medo por vocês. Por isso fugi.

— E nunca pensaste em nós? Em mim? Na tua filha?

Ele passou as mãos pelo cabelo molhado. — Todos os dias. Mas achava que era melhor assim. Que vocês estariam mais seguras sem mim.

As lágrimas ameaçavam cair, mas não lhe daria esse prazer.

— E agora? O que é que mudou?

Ele respirou fundo. — Paguei tudo o que devia. Trabalhei em França, na Suíça… Fiz de tudo para limpar o meu nome. E agora quero voltar para casa.

Senti um nó no estômago. Casa? Depois de dez anos? Olhei para as fotografias na estante: eu e a Leonor na praia da Comporta; eu sozinha no Natal; Leonor com a avó e a tia Catarina. Nenhuma com ele.

— Não há casa para ti aqui, Ricardo.

Ele levantou-se abruptamente. — Maria, eu amo-te! Amo a nossa filha! Não posso continuar longe!

Nesse momento ouvi passos no corredor. Leonor apareceu à porta da sala, esfregando os olhos sonolentos.

— Mãe? Quem é este senhor?

O silêncio foi cortante. O Ricardo olhou para ela como se visse um fantasma.

— Sou… sou um amigo da tua mãe — gaguejou ele.

Leonor olhou para mim desconfiada. — Está tudo bem?

Abracei-a com força. — Está sim, querida. Vai dormir, já vou ter contigo.

Quando ela saiu, virei-me para ele com fúria contida.

— Vês? Ela não te conhece! Não tens direito de aparecer assim e baralhar tudo!

Ele caiu de joelhos à minha frente.

— Dá-me uma oportunidade… Por favor…

Afastei-me dele como se queimasse.

— Preciso de tempo para pensar. Vais-te embora agora.

Ele hesitou, mas acabou por sair sem protestar. Fechei a porta e desatei a chorar baixinho para não acordar a Leonor.

Nos dias seguintes, a presença dele pairava sobre tudo: nos olhares curiosos dos vizinhos; nas perguntas da minha mãe; nos silêncios da Catarina ao telefone; até no cheiro do café pela manhã parecia sentir-lhe a falta.

Uma semana depois, encontrei-o à saída da escola da Leonor.

— Não podes fazer isto! — sibilei entre dentes enquanto ela corria para os braços da avó.

— Só quero vê-la de longe…

— Vais estragar tudo! Ela está bem assim!

Ele olhou-me com olhos marejados de lágrimas.

— Maria… eu perdi tudo estes anos. Só me resta tentar recuperar-vos.

A raiva deu lugar ao cansaço. Senti-me velha de repente, exausta de lutar sozinha contra tudo e todos: contra as contas por pagar; contra os julgamentos da família; contra as perguntas da Leonor sobre o pai ausente; contra a solidão das noites intermináveis.

Nessa noite liguei à Catarina.

— Achas que sou capaz de perdoar?

Ela suspirou do outro lado da linha.

— Só tu podes saber isso, mana. Mas lembra-te: perdoar não é esquecer. É escolher não deixar que o passado te defina para sempre.

Fiquei horas acordada a olhar para o teto do quarto onde tantas vezes chorei sozinha. Lembrei-me do Ricardo antes das dívidas; dos passeios ao domingo no Parque da Paz; dos sonhos partilhados numa casa pequena mas cheia de esperança.

Na manhã seguinte, chamei-o para conversar no café onde costumávamos ir quando éramos jovens.

— Não sei se consigo confiar em ti outra vez — disse-lhe sem rodeios.

Ele pegou-me nas mãos com delicadeza inesperada.

— Não te peço que esqueças o que fiz. Só te peço uma oportunidade para provar que mudei.

Olhei-o nos olhos e vi ali dor verdadeira, mas também arrependimento e vontade de recomeçar.

— Vais ter de conquistar cada dia — avisei-lhe. — Pela Leonor… e por mim.

Ele assentiu em silêncio, lágrimas a correr-lhe pelo rosto cansado.

Hoje escrevo estas palavras sem saber ainda qual será o nosso futuro. Sei apenas que sobrevivi ao abandono e à vergonha; que fui mãe e pai durante dez anos; que aprendi a ser forte quando só queria ser fraca por um instante.

Mas também sei que ninguém é só feito dos seus erros ou das suas ausências. E pergunto-me: será possível reconstruir uma família sobre as ruínas do passado? Ou há feridas que nunca saram verdadeiramente?