Como Ajudei o Meu Filho a Compreender o Peso das Suas Palavras
— Mãe, posso falar contigo? — A voz do Tomás, abafada pelo barulho da chuva a bater nos vidros, soou hesitante, quase culpada. Eu estava na cozinha, a preparar o jantar, mas larguei logo a colher de pau. O tom dele não era habitual.
— Claro, filho. O que se passa? — perguntei, tentando esconder a preocupação que já me apertava o peito.
Ele entrou devagar, os olhos fixos no chão. — Hoje na escola… disse uma coisa feia ao Rodrigo. Ele ficou triste. A professora ouviu e chamou-me à parte.
Senti um nó na garganta. O Tomás sempre fora um miúdo sensível, mas ultimamente, com os colegas novos e as pressões da escola, parecia mais distante. Sentei-me ao lado dele, puxando-o para perto.
— O que disseste ao Rodrigo?
Ele hesitou, mordendo o lábio. — Chamei-lhe “orelhas de abano”. Os outros riram-se… mas ele ficou mesmo triste, mãe. Eu não queria que ele chorasse.
Fechei os olhos por um instante. Lembrei-me de quando era miúda e também fui alvo de gozo por causa do meu sotaque alentejano quando cheguei a Lisboa. A dor das palavras nunca desaparece totalmente.
— Sabes, Tomás, as palavras podem ser como pedras. Às vezes atiramos sem pensar e magoamos mais do que imaginamos.
Ele olhou para mim, os olhos já húmidos. — Eu não queria magoá-lo… só queria que os outros gostassem de mim.
A sinceridade dele desarmou-me. Quantas vezes não fizemos todos coisas destas para sermos aceites? Mas sabia que tinha de lhe mostrar o peso do que fizera.
— E agora? O que achas que devias fazer?
Ele encolheu os ombros. — Não sei… pedir desculpa?
— Sim, mas não basta dizer “desculpa”. Tens de mostrar ao Rodrigo que percebes o que sentiu. Queres que eu te ajude?
Ele assentiu, e juntos pensámos numa forma de reparar o erro. Escrevemos uma carta ao Rodrigo. Tomás quis desenhar também umas orelhas engraçadas e escreveu: “Desculpa por ter gozado contigo. Fui parvo e não pensei nos teus sentimentos. Gostava de ser teu amigo.” No final, assinou com um coração trémulo.
No dia seguinte, Tomás foi para a escola com a carta dobrada no bolso. Eu fiquei em casa, inquieta, a imaginar como tudo correria. Quando voltou, vinha mais leve.
— Entregaste a carta?
— Entreguei. O Rodrigo leu e sorriu. Disse que também já me tinha chamado nomes antes e que podíamos ser amigos outra vez.
Senti um alívio imenso, mas sabia que a lição não podia ficar por ali. Ao jantar, sentei-me com o Tomás e com o pai dele, o Miguel, para conversarmos em família.
— Sabes, filho — começou o Miguel — quando eu era pequeno também gozei um colega por ser gordo. Nunca mais me esqueci da cara dele naquele dia. Às vezes ainda penso nisso.
Tomás olhou para nós com uma maturidade nova nos olhos.
— Eu percebi hoje que é fácil magoar alguém sem querer… e depois é difícil arranjar as coisas.
A conversa foi interrompida pela minha mãe, a avó do Tomás, que entrou sem bater à porta como sempre fazia.
— Que caras são essas? — perguntou ela, pousando o saco das compras na mesa.
Expliquei-lhe o que se passara. Ela suspirou e sentou-se connosco.
— No meu tempo ninguém pedia desculpa por nada — disse ela. — Era cada um por si. Mas acho bonito ver-vos assim a conversar.
O Tomás sorriu-lhe timidamente e ela afagou-lhe o cabelo.
Nos dias seguintes reparei numa mudança subtil no meu filho. Era mais atento aos colegas, mais cuidadoso nas palavras. Uma tarde trouxe o Rodrigo cá a casa para jogar PlayStation. Ouvi-os rir na sala e senti uma pontinha de orgulho.
Mas nem tudo ficou resolvido assim tão facilmente. Uma semana depois recebi uma chamada da mãe do Rodrigo.
— Olá, Ana? Fala a Teresa, mãe do Rodrigo. Queria agradecer-te pela carta do Tomás… mas também queria falar contigo sobre outra coisa.
O meu coração disparou.
— Claro, Teresa, diga.
— O Rodrigo tem andado triste porque outros meninos continuam a gozar com ele… Não sei bem como lidar com isto.
Senti-me impotente. O problema era maior do que eu pensara — não era só o meu filho, era toda uma cultura de gozo e exclusão na escola.
Nessa noite sentei-me com o Miguel e desabafei:
— Achas que devíamos falar com a escola? Isto não pode continuar assim…
Ele concordou e no dia seguinte marcámos uma reunião com a professora da turma.
Na sala da escola, rodeados de desenhos coloridos nas paredes e do cheiro a giz, expusemos as nossas preocupações à professora Sofia.
— Eu sei que estas coisas acontecem — disse ela — mas às vezes faltam-nos ferramentas para lidar com elas. Talvez possamos organizar uma sessão sobre empatia e respeito pelas diferenças…
Ofereci-me para ajudar e, algumas semanas depois, estava eu própria na sala de aula do Tomás a contar a minha história de infância: como me senti sozinha quando gozam comigo pelo sotaque e como isso me marcou para sempre.
As crianças ouviram em silêncio. No final pedi-lhes para escreverem num papel anónimo uma coisa de que se arrependessem de ter dito ou feito a alguém. Alguns choraram ao ler as histórias uns dos outros.
O Tomás veio ter comigo no fim da sessão e abraçou-me forte.
— Obrigado por me ajudares a perceber isto tudo, mãe.
Sorri-lhe com lágrimas nos olhos.
Hoje olho para trás e vejo como aquele momento difícil se transformou numa oportunidade de crescimento — não só para o Tomás, mas também para mim enquanto mãe e para toda a turma dele.
Às vezes pergunto-me: quantas feridas carregamos em silêncio por palavras ditas sem pensar? E será que conseguimos mesmo ensinar os nossos filhos a serem melhores do que nós fomos?