Abracei-a como filha, mas ela partiu-me o coração: Uma história de confiança, traição e família sem fronteiras
— Mariana, não podes continuar a fingir que está tudo bem! — gritou o meu marido, Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer e o silêncio pesado que se instalara desde aquela noite fatídica.
Eu olhava para a chávena entre as minhas mãos, os dedos tremiam. Tinha passado horas a tentar perceber em que momento tudo se desmoronara. Inês, a menina de olhos grandes e sorriso tímido que acolhemos há oito anos, já não era a mesma. Ou talvez nunca tivesse sido quem eu imaginei.
— Rui, ela é nossa filha — murmurei, sentindo a voz embargar-se. — Não posso desistir dela assim.
Ele passou as mãos pelo cabelo, exasperado. — Mariana, ela mentiu-nos. Roubou-nos. E agora… agora desapareceu! Não vês que isto não é normal?
O relógio marcava três da manhã. A casa estava mergulhada numa penumbra inquietante. O nosso filho biológico, Tomás, dormia no quarto ao lado, alheio ao caos que se abatia sobre nós. Eu sentia-me dividida entre a raiva e a culpa. Tinha falhado como mãe? Ou era simplesmente impossível amar alguém que não partilhava o nosso sangue?
Lembro-me do dia em que conheci a Inês. Tinha seis anos e um olhar desconfiado. Viera de um lar em Setúbal, depois de uma infância marcada por maus-tratos e abandono. Quando entrou na nossa casa pela primeira vez, agarrou-se à minha mão com tanta força que pensei que nunca mais me largaria.
— Vais mesmo ser minha mãe? — perguntou-me, com uma voz quase inaudível.
— Vou, meu amor. Para sempre — prometi-lhe, sentindo o coração apertar-se de ternura e medo.
Os primeiros anos foram difíceis. Inês tinha pesadelos todas as noites e chorava baixinho para não acordar ninguém. Eu sentava-me à beira da cama dela, acariciava-lhe o cabelo e cantava-lhe canções de embalar. Aos poucos, foi abrindo o coração. Começou a chamar-me mãe sem hesitar, a rir-se com o Tomás, a trazer desenhos da escola onde éramos todos uma família feliz.
Mas havia sempre uma sombra nos olhos dela. Uma tristeza funda, como se nunca conseguisse acreditar totalmente na felicidade. Rui dizia que era normal, que o tempo curaria tudo. Eu queria acreditar.
A adolescência trouxe tempestades. Inês tornou-se rebelde, fechada. Passava horas no telemóvel, trancada no quarto. As notas começaram a cair, as discussões tornaram-se diárias.
— Não percebes nada! — gritava ela quando eu tentava conversar.
— Só quero ajudar-te, filha…
— Não sou tua filha! — atirou-me um dia, com uma frieza que me gelou a alma.
Chorei nessa noite como nunca tinha chorado antes. Rui tentou consolar-me, mas eu sentia-me sozinha na minha dor. O Tomás também sofria; via-o olhar para mim com medo de dizer a coisa errada.
Depois vieram os segredos. O dinheiro que desaparecia da carteira do Rui, as mentiras sobre onde estava e com quem andava. Uma noite chegou a casa às quatro da manhã, com os olhos vermelhos e cheiro a álcool.
— Inês, onde estiveste? — perguntei-lhe, tentando manter a calma.
— Isso não te interessa! — respondeu ela, empurrando-me para passar.
O Rui perdeu a paciência nesse dia. Discutiram alto e feio. Ela fugiu de casa nessa noite e só voltou dois dias depois, trazida pela polícia depois de ter sido apanhada numa loja a tentar roubar roupa.
A vergonha abateu-se sobre nós como uma nuvem negra. Os vizinhos cochichavam à nossa passagem; os pais dos amigos do Tomás começaram a afastar-se. Eu sentia-me cada vez mais isolada.
Mas o pior ainda estava para vir.
Numa tarde chuvosa de novembro, recebi um telefonema da escola: Inês tinha sido apanhada com drogas na mochila. Fui buscá-la à esquadra, onde me olhou com um misto de desafio e desespero.
— Porque fazes isto? — perguntei-lhe no carro, as lágrimas a correrem-me pelo rosto.
Ela encolheu os ombros. — Não sou como vocês. Nunca fui.
As palavras dela cravaram-se em mim como facas. Senti-me impotente, derrotada. Rui queria interná-la numa clínica; eu insisti em tentar mais uma vez.
— Ela precisa de nós agora mais do que nunca — disse-lhe.
— E nós? Quando é que alguém pensa em nós? — gritou ele.
As discussões tornaram-se rotina. O Tomás começou a passar mais tempo fora de casa; eu via-o afastar-se lentamente da irmã e de nós.
Numa noite gelada de dezembro, acordei com um pressentimento estranho. Fui ao quarto da Inês e encontrei-o vazio. A janela aberta deixava entrar o vento cortante da madrugada. Em cima da cama, um bilhete escrito à pressa:
“Desculpa mãe. Não consigo ficar aqui. Não sou boa para vocês. Amo-te à minha maneira. Inês”
O desespero tomou conta de mim. Liguei-lhe vezes sem conta; o telemóvel estava desligado. Rui saiu à rua à procura dela; eu fiquei sentada no chão do quarto dela, abraçada ao casaco que ela deixara para trás.
Foram dias de angústia sem notícias. Contactámos amigos, hospitais, até as autoridades. Ninguém sabia dela.
Na véspera de Natal, recebi uma mensagem anónima: “Estou bem. Preciso de tempo. Não me procurem.” Era dela — reconheci o tom seco e direto.
O Rui explodiu:
— Chega! Não podemos continuar assim! Temos de pensar no Tomás… e em nós!
Eu sabia que ele tinha razão, mas como é que se desiste de uma filha? Mesmo quando ela não nasceu do nosso ventre?
Os meses passaram devagar. A dor foi dando lugar à resignação; aprendi a viver com a ausência dela como quem aprende a viver com uma cicatriz profunda.
O Tomás acabou o secundário e entrou na universidade no Porto; Rui e eu tentámos reconstruir o casamento feito em cacos.
Às vezes sonhava com a Inês: via-a pequenina outra vez, agarrada à minha mão no primeiro dia em casa. Acordava com lágrimas nos olhos e um vazio no peito impossível de preencher.
Dois anos depois recebi uma carta sem remetente:
“Mãe,
Sei que te magoei muito e não sei se algum dia vou conseguir perdoar-me por isso. Precisei fugir para perceber quem sou e porque me sinto sempre deslocada em todo o lado. Não foi culpa tua nem do pai nem do Tomás — vocês deram-me tudo o que podiam dar.
Estou melhor agora. Tenho trabalho num café em Lisboa e estou a tentar estudar à noite. Às vezes penso em voltar mas tenho medo de não ser bem-vinda.
Amo-te sempre,
Inês”
Li aquela carta dezenas de vezes até as palavras se desvanecerem no papel molhado pelas minhas lágrimas.
Rui leu-a em silêncio e depois abraçou-me como há muito não fazia.
— Talvez um dia ela volte mesmo — disse ele baixinho.
Hoje olho para trás e pergunto-me: fiz tudo o que podia? O amor é suficiente para curar feridas tão antigas? Será possível construir uma família sem laços de sangue ou estamos todos condenados a repetir os erros do passado?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam por um filho que não nasceu do vosso ventre?