A Última Esperança de Dona Lurdes: Entre Sonhos e Desilusões no Bairro de Benfica

— Não me venhas com histórias, mãe! — gritou o Tiago, batendo com força a porta do quarto. Senti o coração apertar, como se cada palavra dele fosse uma faca a cortar-me por dentro. Estava cansada, tão cansada. Mas não podia mostrar fraqueza. Não agora, quando tudo parecia desmoronar.

Acordei cedo naquela manhã de sábado, com a esperança de que, pelo menos hoje, as coisas corressem bem. O sol mal despontava sobre os telhados do bairro de Benfica, mas eu já estava de pé, a preparar o café e a pensar no que faltava em casa. O velho liquidificador tinha-se avariado outra vez — já nem triturava a sopa para a Leonor, a minha neta mais nova. Era só mais uma coisa a juntar à lista interminável de problemas.

— Mãe, não te esqueças do pão! — ouvi a voz da minha filha, Mariana, vinda do corredor. Ela nunca esquecia nada, mas ultimamente andava distante, sempre com o telemóvel na mão e os olhos perdidos noutro mundo.

Vesti o casaco gasto e saí para a rua. O ar cheirava a terra molhada e gasolina. Caminhei até ao Pingo Doce da esquina, onde as prateleiras brilhavam sob as luzes frias e as pessoas se atropelavam nos corredores apertados. Fui direta à secção dos eletrodomésticos. O liquidificador novo reluzia na prateleira, com um preço que me fez hesitar. Mas pensei na Leonor, na sopa dela, e na esperança de que um pequeno gesto pudesse trazer alguma paz à nossa casa.

Peguei no aparelho e fui para a caixa. Atrás de mim, uma senhora discutia com o marido sobre o preço das laranjas. À minha frente, um rapaz olhava para mim com impaciência. Senti-me invisível, como tantas vezes antes.

Quando cheguei a casa, Tiago estava sentado à mesa da cozinha, com os olhos vermelhos. Mariana nem olhou para mim. Coloquei o liquidificador novo no balcão e tentei sorrir.

— Olhem só o que comprei! Agora já podemos fazer batidos outra vez.

Tiago bufou.

— Para quê? Para fingirmos que está tudo bem? — atirou ele, levantando-se de rompante.

Mariana suspirou, sem levantar os olhos do telemóvel.

— Mãe, devias ter esperado. Ouvi dizer que amanhã vai haver uma promoção enorme… podias ter poupado dinheiro.

Senti o chão fugir-me dos pés. Dinheiro… sempre o maldito dinheiro. Trabalhei toda a vida como empregada de limpeza numa escola primária e agora, reformada, cada euro conta. Mas naquele momento só queria ver um sorriso nos rostos deles.

— Eu só queria ajudar… — murmurei, mas ninguém me ouviu.

À noite, sentei-me sozinha na sala. O silêncio era pesado. Olhei para o liquidificador novo na cozinha e senti uma lágrima escorrer-me pela face. Lembrei-me do meu marido, António, que partiu há três anos. Ele saberia o que dizer para acalmar os ânimos. Ele sabia sempre como transformar pequenos gestos em grandes momentos.

No dia seguinte, acordei com barulho na cozinha. Mariana estava a discutir ao telefone com alguém.

— Não posso ir hoje! A minha mãe gastou o dinheiro todo num liquidificador estúpido! — gritava ela.

Senti-me esmagada pela culpa. Fui até à cozinha e tentei falar com ela.

— Mariana… eu não sabia da promoção…

Ela virou-se para mim, olhos cheios de lágrimas e raiva.

— Nunca sabes nada! Achas que isto é fácil? Achas que é fácil viver aqui contigo e com o Tiago sempre a discutir?

Fiquei sem palavras. O Tiago entrou na cozinha nesse momento e lançou-me um olhar frio.

— Devias ter esperado, mãe. Agora não temos dinheiro para pagar a conta da luz.

O mundo desabou sobre mim naquele instante. Sentei-me à mesa e enterrei o rosto nas mãos. Senti-me pequena, inútil. Tudo o que fiz foi tentar ajudar — mas parece que só consigo piorar as coisas.

Naquela tarde, fui até ao jardim do bairro. Sentei-me num banco e olhei para as crianças a brincar. Lembrei-me de quando os meus filhos eram pequenos, de como corriam atrás das pombas e riam alto. Onde foi parar essa alegria?

Uma vizinha aproximou-se — a Dona Emília, sempre pronta para uma palavra amiga.

— Então Lurdes, estás bem?

Olhei para ela e não consegui conter as lágrimas.

— Sinto que perdi tudo… até a capacidade de fazer os meus filhos felizes.

Ela pousou uma mão no meu ombro.

— Às vezes damos tudo o que temos e mesmo assim parece pouco. Mas eles vão perceber um dia, acredita.

Voltei para casa ao fim da tarde. O ambiente estava mais calmo. Mariana veio ter comigo à sala.

— Desculpa mãe… Eu é que estou nervosa com tudo isto. O trabalho está difícil e eu só queria ajudar…

Abracei-a com força. Tiago apareceu à porta e ficou ali parado por um momento antes de se juntar ao abraço.

Naquela noite fizemos sopa no liquidificador novo. Não era perfeita — ficou um pouco grossa demais — mas sentámo-nos todos juntos à mesa pela primeira vez em semanas. Rimos das desgraças da sopa e falámos dos velhos tempos.

No fim do jantar, olhei para os meus filhos e senti uma ponta de esperança renascer dentro de mim. Talvez nunca consiga dar-lhes tudo o que precisam — mas posso dar-lhes amor, mesmo quando tudo o resto falha.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vão perceber quanto sacrifício cabe nos pequenos gestos? Será que algum dia vão olhar para trás e ver que mesmo os erros foram feitos por amor?