A Casa Que Nunca Foi Minha: Um Desabafo de Injustiça Familiar

— Não é justo, mãe! — gritei, sentindo a garganta arder de raiva e frustração. — A avó deixou a casa para mim! Está escrito no testamento!

A minha mãe olhou-me com aquele olhar frio que só ela sabia fazer, como se cada palavra minha fosse uma afronta pessoal. Ao lado dela, José, o meu meio-irmão, cruzava os braços e sorria de canto. Era um sorriso de vitória, de quem já sabia o desfecho antes sequer de a discussão começar.

— Filha, tu já tens a tua vida em Lisboa — disse ela, ajeitando o lenço no pescoço. — O José ficou aqui connosco, sempre ajudou quando foi preciso. Não achas que faz mais sentido ser ele a ficar com a casa?

O sangue fervia-me nas veias. A casa da minha avó paterna era mais do que quatro paredes e um telhado. Era o cheiro do pão quente ao domingo, as tardes de verão no quintal, as histórias contadas à lareira. Era o último pedaço do meu pai que ainda me restava depois da sua morte súbita há dez anos.

— A avó deixou claro no testamento! — insisti, tentando controlar as lágrimas. — Ela queria que fosse eu a ficar com a casa. Não é uma questão de onde vivo ou de quem ajudou mais. É uma questão de respeito pela vontade dela!

José bufou e levantou-se da cadeira.

— Olha, Mariana, tu nem sequer vens cá! Só apareces quando te convém. Eu é que estive aqui quando a mãe precisou, quando o telhado caiu, quando foi preciso pintar as paredes. A casa é da família, não é só tua!

A palavra “família” soou-me como uma faca. Desde que a minha mãe se casou com o António e teve o José, sempre senti que era uma estranha na minha própria casa. O António nunca me aceitou verdadeiramente como filha e fazia questão de me lembrar disso sempre que podia.

Lembro-me do dia em que a minha avó morreu. Estava sozinha no hospital, segurando-lhe a mão fria e frágil. Ela olhou-me nos olhos e disse:

— Mariana, esta casa é tua. Promete-me que não deixas ninguém tirar-to.

Prometi-lhe entre lágrimas. Mas agora sentia-me impotente perante a união do meu meio-irmão e da minha mãe.

— E o testamento? — perguntei, já sem forças.

A minha mãe encolheu os ombros.

— O advogado disse que pode ser contestado. Afinal, tu já tens onde morar. Não achas que estás a ser egoísta?

Egoísta? Eu? Passei anos a tentar agradar à minha mãe, a ser a filha perfeita depois da morte do meu pai. Fui estudar para Lisboa porque ela dizia que era o melhor para mim. Trabalhei para pagar as minhas contas porque ela dizia que não podia ajudar. E agora era eu a egoísta?

— Mariana — interrompeu José —, se quiseres vir cá passar uns dias, és sempre bem-vinda. Mas a casa é melhor ficar comigo. Eu vou cuidar dela.

Senti um nó na garganta tão apertado que mal conseguia respirar. Saí da sala sem olhar para trás, ouvindo ainda os sussurros deles às minhas costas.

Durante semanas tentei lutar pelo que era meu. Falei com advogados, procurei documentos antigos, tentei convencer familiares a testemunharem a favor da minha avó. Mas tudo parecia jogar contra mim. O António tinha amigos na junta de freguesia, o José era conhecido por todos na aldeia como “o bom rapaz” que ajudava toda a gente.

Os dias passavam e eu sentia-me cada vez mais sozinha. Os meus amigos em Lisboa diziam para eu esquecer, seguir em frente. Mas como se esquece uma promessa feita à pessoa que mais amámos?

Certa noite, recebi uma mensagem do José:

“Mariana, não compliques mais as coisas. A mãe está cansada disto tudo. Pensa nela também.”

Pensei em tudo o que tinha perdido: o pai, a avó, agora a casa. Pensei nos natais passados naquela sala pequena mas cheia de calor humano. Pensei nas tardes em que brincava no jardim enquanto o meu pai regava as flores.

No dia da decisão final do tribunal, sentei-me no banco de madeira do corredor e esperei horas até ouvir o meu nome chamado. O juiz leu os documentos friamente, sem emoção.

— De acordo com os factos apresentados e considerando as necessidades dos envolvidos, decide-se atribuir a posse da casa ao senhor José Silva.

O mundo desabou à minha volta. Senti as pernas fraquejarem e só não caí porque me agarrei à parede.

Saí do tribunal sem dizer uma palavra à minha mãe ou ao José. Eles nem sequer tentaram falar comigo.

Voltei para Lisboa com uma mala pequena e um vazio enorme no peito. Passei dias sem conseguir dormir, revivendo cada momento daquela infância roubada.

Um mês depois recebi uma carta da minha mãe:

“Filha,
Espero que um dia entendas que fizemos o melhor para todos. O José precisa daquela casa mais do que tu. Não guardes rancor.
Beijos,
Mãe”

Rancor? Não sei se era rancor ou apenas tristeza profunda por perceber que nunca fui verdadeiramente parte daquela família depois da morte do meu pai.

Hoje passo pela casa da minha avó apenas nos sonhos. Vejo-me criança outra vez, correndo pelo jardim, ouvindo as gargalhadas do meu pai e o cheiro do bolo acabado de sair do forno.

Pergunto-me muitas vezes: será que algum dia vou conseguir perdoar? Ou será que certas feridas nunca saram?

E vocês? Já sentiram que vos tiraram algo que era vosso por direito? Como se volta a confiar depois disso?