A Última Canção do Meu Pai: Despertar em Lisboa

— Mariana, filha, ouves-me? — A voz do meu pai tremia, como se cada sílaba fosse uma corda prestes a rebentar. O cheiro a desinfetante misturava-se com o som abafado da chuva contra a janela do quarto 312 do Hospital de Santa Maria. Eu estava ali, presa entre o silêncio e a música, entre a sombra e a luz. Não conseguia responder, mas sentia tudo. O peso da mão dele na minha, o dedilhar hesitante da guitarra que ele nunca largava, nem nos piores dias.

Durante vinte meses, fui um corpo imóvel, um enigma para os médicos e um fantasma para a minha família. Acordei numa manhã cinzenta de novembro, quando o meu pai tocava a nossa canção — aquela que ele compôs quando eu era criança e que só tocava nos momentos mais difíceis. Senti uma lágrima quente escorrer pelo rosto antes mesmo de conseguir abrir os olhos. Ouvi a minha mãe soluçar num canto do quarto, a minha irmã Inês a discutir com o médico no corredor: “Ela não vai acordar! Já chega disto!” E o meu pai, sempre ali, como se pudesse acordar-me só com a força da sua música.

O regresso à vida foi como atravessar um nevoeiro denso. As vozes eram ecos distantes, os rostos sombras deformadas pela dor e pela esperança. Lembro-me do primeiro olhar da minha mãe — olhos vermelhos, mãos trémulas — e das palavras que nunca disse: “Porque é que não foste tu?” Senti-as como facas no peito. O meu acidente tinha sido um golpe duplo: perdi o controlo do carro numa curva da Marginal, mas levei comigo o silêncio da família.

Os dias seguintes foram um desfile de visitas e de perguntas sussurradas. A minha avó Maria rezava terços ao meu lado, enquanto o meu tio António discutia com a minha mãe sobre quem devia pagar as contas do hospital. “A culpa é tua! Se tivesses estado mais atenta…” gritava ele, enquanto a minha mãe se encolhia ainda mais na cadeira.

A minha irmã Inês recusava-se a olhar-me nos olhos. Só mais tarde percebi porquê: ela estava grávida e ninguém sabia quem era o pai. Durante o meu coma, a casa encheu-se de segredos e ressentimentos. O meu pai perdeu o emprego para cuidar de mim; a minha mãe começou a beber às escondidas; Inês fugiu de casa durante semanas, deixando apenas bilhetes rabiscados na porta do frigorífico.

O hospital tornou-se o palco das nossas tragédias privadas. Lembro-me de ouvir os médicos discutirem junto à porta:
— Ela não vai recuperar totalmente. Preparem-se para o pior.
E depois o meu pai, sempre ele:
— Enquanto eu tiver voz e dedos para tocar, ela vai ouvir-me. Não me peçam para desistir.

Quando finalmente consegui falar, as palavras saíram-me arranhadas:
— Pai… — foi tudo o que consegui dizer.
Ele largou a guitarra e chorou como nunca o tinha visto chorar. A minha mãe caiu de joelhos ao lado da cama. Inês saiu do quarto sem olhar para trás.

A recuperação foi lenta e dolorosa. Tive de aprender a andar, a comer, até a sorrir outra vez. O fisioterapeuta, o senhor Joaquim, era duro mas justo:
— Mariana, se queres voltar à tua vida, tens de lutar. Ninguém pode fazê-lo por ti.
Mas eu sentia que já não tinha uma vida para onde voltar. Os amigos desapareceram; o namorado arranjou outra pessoa; até o meu cão já não me reconhecia quando voltei para casa.

A casa estava diferente — mais fria, mais pequena. O piano na sala estava coberto de pó; as fotografias antigas tinham sido viradas para baixo nas estantes. A minha mãe evitava-me; passava horas fechada no quarto com uma garrafa de vinho barato. O meu pai tentava manter tudo unido com jantares improvisados e piadas sem graça:
— Sabes qual é o animal mais antigo do mundo? A zebra! Porque está sempre às riscas!
Eu sorria por ele, mas por dentro sentia-me vazia.

Uma noite ouvi gritos vindos da cozinha:
— Não aguento mais! — era a voz da minha mãe.
— Ela precisa de nós! — insistia o meu pai.
— E nós? Quem cuida de nós?
O silêncio que se seguiu foi pior do que qualquer discussão.

Inês voltou para casa com uma barriga já visível e olhos carregados de culpa. Sentou-se ao meu lado na cama e sussurrou:
— Desculpa não ter estado aqui quando acordaste.
Toquei-lhe na mão e ela desatou a chorar.
— Não sei quem é o pai — confessou. — Tenho medo.
Abracei-a como pude. Pela primeira vez desde que acordei, senti que talvez ainda houvesse algo por salvar na nossa família.

Os meses passaram entre consultas, fisioterapia e silêncios pesados à mesa. Um dia, encontrei uma carta escondida no piano — era do meu pai para mim, escrita durante o coma:
“Filha,
Se algum dia voltares para nós, quero que saibas que nunca deixei de acreditar em ti. A música é a nossa ponte para tudo aquilo que não conseguimos dizer em voz alta. Se ouvires esta canção, saberás que estou sempre contigo.
Com amor,
Pai”

Chorei durante horas ao som da guitarra dele gravada num velho gravador de cassetes. Percebi então que não era só eu que tinha estado presa na escuridão — todos nós estávamos à deriva, à espera de um sinal para recomeçar.

No aniversário do meu despertar, organizei um jantar em casa. Convidei todos: os meus pais, Inês (agora mãe de uma menina chamada Leonor), até o tio António e a avó Maria. No final da noite pedi ao meu pai para tocar a nossa canção. Ele hesitou — as mãos já não tinham a mesma força — mas tocou assim mesmo. Cantámos juntos pela primeira vez em anos.

A música encheu a casa de uma luz quente e antiga. A minha mãe sorriu entre lágrimas; Inês dançou com Leonor nos braços; até o tio António se rendeu e cantou desafinado. Pela primeira vez desde o acidente senti-me viva — verdadeiramente viva.

Agora olho para trás e pergunto-me: quantas famílias sobrevivem ao silêncio? Quantos segredos cabem entre quatro paredes antes de rebentarem? Será que é preciso perder tudo para percebermos o valor das pequenas coisas?

E vocês? Já sentiram que só acordaram para a vida depois de atravessar uma tempestade?