“Volto para casa e digo: ‘Quero o divórcio’ — Foi então que me lembrei das palavras da minha mãe”

— Quero o divórcio.

As palavras caíram no chão da sala como um vaso de cristal a estilhaçar-se. Fiquei ali, parada, com a mão ainda pousada na maçaneta da porta, enquanto o Dário largava a mochila no sofá sem sequer me olhar nos olhos. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. A Sara estava no quarto, a fazer os trabalhos de casa, alheia ao terramoto que acabava de abalar o nosso mundo.

— O quê? — consegui balbuciar, sentindo o coração a bater-me nas têmporas.

— Ouviste bem, Leonor. Não dá mais. Estou farto. Preciso de outra vida — respondeu ele, com uma frieza que nunca lhe conhecera.

Lembrei-me então das palavras da minha mãe, ditas numa tarde de verão, muitos anos antes: “Filha, nunca te esqueças: quando um homem muda de repente, é porque já mudou por dentro há muito tempo.” Na altura achei que era exagero, mas agora aquelas palavras faziam eco dentro de mim.

— Há outra pessoa? — perguntei, tentando manter a voz firme.

Ele hesitou por um segundo, mas depois assentiu com um encolher de ombros quase indiferente.

— Chama-se Patrícia. Conheci-a no trabalho. Não é culpa dela. Isto já vinha de trás.

Senti o chão fugir-me dos pés. O apartamento do meu avô, onde crescemos juntos, onde a Sara deu os primeiros passos, parecia agora um cenário vazio, sem sentido. Sentei-me à mesa da cozinha, as mãos a tremerem tanto que mal consegui segurar o copo de água.

— E a Sara? — perguntei, num sussurro.

— Vamos falar com ela juntos. Não quero que ela pense que isto é culpa tua… ou dela.

A raiva subiu-me à garganta. Como podia ele ser tão racional? Tão frio? Tantos anos juntos, tantas noites em claro por causa do trabalho dele, tantas vezes em que pus os meus sonhos em pausa para manter a família unida… E agora isto?

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama da Sara enquanto ela dormia, a olhar para o rosto sereno dela e a perguntar-me como lhe ia explicar que o pai ia embora. Lembrei-me das discussões baixas, dos silêncios cada vez mais longos à mesa do jantar, das mensagens que ele recebia e dizia serem “do escritório”. No fundo, já sabia há muito tempo.

No dia seguinte, Dário fez as malas e saiu. A Sara chorou durante horas. Eu tentei ser forte, mas quando ela finalmente adormeceu no meu colo, desatei a chorar como uma criança perdida.

Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Os vizinhos começaram a cochichar no elevador. A minha sogra ligou-me a perguntar o que é que eu tinha feito para o Dário querer sair de casa. O meu pai apareceu com sacos de compras e um silêncio pesado nos olhos.

Uma tarde, ao arrumar as roupas do Dário, encontrei uma carta antiga minha. Era do tempo em que ainda namorávamos. Escrevi-lhe quando ele foi trabalhar para Lisboa durante seis meses: “Promete-me que nunca vais desistir de nós.” Senti uma dor aguda no peito. Ele tinha desistido.

A Sara começou a ter más notas na escola. Uma professora chamou-me à parte:

— Dona Leonor, a Sara anda muito distraída… aconteceu alguma coisa em casa?

Senti vergonha. Como explicar que a nossa família perfeita tinha ruído? Que eu já não sabia como ser mãe e mulher ao mesmo tempo?

Uma noite, depois de deitar a Sara, liguei à minha mãe.

— Mãe… não aguento mais. Sinto-me tão sozinha…

Ela ficou em silêncio uns segundos antes de responder:

— Filha, às vezes é preciso perder tudo para percebermos quem somos realmente. Não deixes que ele te roube isso também.

As palavras dela ficaram comigo durante dias. Comecei a sair mais com a Sara. Fomos ao cinema, passeámos à beira-rio em Vila Nova de Gaia, fizemos bolos ao domingo. Aos poucos, fui reconstruindo uma rotina só nossa.

O Dário vinha buscar a Sara aos fins-de-semana. No início era estranho vê-lo à porta com aquele ar culpado e as mãos nos bolsos. Um dia trouxe a Patrícia consigo. Era bonita e simpática demais para o meu gosto.

— Olá Leonor — disse ela, estendendo-me a mão. — Ouvi falar muito de si.

Sorri por educação, mas por dentro só me apetecia gritar.

A Sara ficou calada o resto do dia depois desse encontro. À noite perguntou-me:

— Mãe… tu também vais arranjar outro namorado?

Fiquei sem resposta. Não sabia se queria voltar a confiar em alguém.

Os meses passaram devagar. O Natal foi um suplício: metade com o Dário e a Patrícia, metade comigo e os meus pais. A Sara parecia cada vez mais dividida entre dois mundos.

Um dia recebi uma carta do tribunal: o Dário queria vender o apartamento para dividir os bens. Senti-me traída outra vez — aquele era o lar da minha família há três gerações!

Fui falar com ele:

— Não podes fazer isto! Este apartamento era do meu avô!

Ele encolheu os ombros:

— Preciso do dinheiro para começar de novo…

A raiva transformou-se em desespero. Procurei advogados, tentei negociar com ele, mas tudo parecia inútil.

Foi então que decidi lutar por mim e pela Sara como nunca antes tinha feito. Arranjei um segundo emprego numa pastelaria ao fim-de-semana para conseguir pagar as custas do processo e manter o apartamento. Os meus pais ajudaram como podiam. A Sara começou a perceber que eu não ia desistir dela nem da nossa casa.

Depois de meses de batalhas legais e noites sem dormir, consegui ficar com o apartamento — mas à custa de quase tudo o resto: poupanças gastas, saúde abalada e uma tristeza funda que parecia não ter fim.

Numa noite chuvosa, sentei-me à janela com uma chávena de chá e olhei para as luzes da cidade. A Sara veio sentar-se ao meu lado e encostou a cabeça ao meu ombro.

— Mãe… agora estamos só nós as duas… mas eu gosto disto assim.

Sorri-lhe com lágrimas nos olhos. Pela primeira vez em muito tempo senti paz.

Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi — mas também tudo o que ganhei: coragem, independência e uma ligação ainda mais forte com a minha filha.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia voltarei a confiar? Será possível reconstruir uma vida depois de perder tudo? E vocês… já sentiram que tiveram de se reinventar depois de uma perda assim?