“Voltei para casa e ele disse logo: quero o divórcio” – Quando o chão foge dos pés

— Quero o divórcio, Ana. Não dá mais. — As palavras do Miguel ecoaram na sala como um trovão num dia de verão. Fiquei ali, parada, com as mãos ainda molhadas do detergente, a olhar para ele como se tivesse ouvido mal. O cheiro do arroz a queimar no fogão misturava-se com o cheiro amargo da traição que eu ainda não sabia se era real ou apenas fruto do cansaço.

A minha mãe sempre me dizia: “Ana, nunca te esqueças de ti própria. Os homens vão e vêm, mas tu ficas contigo para sempre.” Eu ria-me dessas palavras, achava-as exageradas, coisa de quem sofreu demais. Agora, com o Miguel à minha frente, olhos baixos e voz trémula, percebi que talvez ela tivesse razão.

— Miguel… — tentei falar, mas a voz falhou-me. — O que é que aconteceu? Foste tu… conheceste alguém?

Ele abanou a cabeça, mas não me olhou nos olhos.

— Não é isso. Estou cansado. Cansado de tudo. Do trabalho, da rotina, de nós. Sinto que já não sou feliz há muito tempo.

A nossa filha, a Matilde, estava no quarto a fazer os trabalhos de casa. Tinha só oito anos e já era tão sensível às mudanças de humor cá em casa. Tentei controlar as lágrimas para não a assustar. Sentei-me à mesa da cozinha e olhei para as mãos — mãos que lavaram roupa, fizeram sopas, seguraram febres e medos durante anos.

— E a Matilde? — perguntei baixinho.

Ele suspirou.

— Não quero que ela sofra. Mas também não quero continuar a viver uma mentira.

A palavra mentira ficou a pairar no ar como um fantasma. Era mentira tudo o que vivemos? As noites em que ficámos acordados com ela doente? Os verões em Vila Nova de Milfontes, onde ríamos até doer a barriga? Ou só era mentira agora?

Naquela noite não dormi. O Miguel ficou no sofá, eu na cama. O silêncio era tão pesado que quase sufocava. Lembrei-me da minha mãe outra vez — ela que ficou sozinha com três filhos quando o meu pai foi embora para França atrás de uma vida melhor e nunca mais voltou.

No dia seguinte, fui trabalhar como se nada fosse. Sou assistente numa escola primária em Almada. As crianças gritavam no recreio e eu sentia-me uma sombra entre elas. A minha colega Lurdes percebeu logo que algo não estava bem.

— Estás com uma cara… aconteceu alguma coisa?

Quis dizer-lhe tudo, mas só consegui encolher os ombros.

— O Miguel quer separar-se.

Ela abraçou-me sem dizer nada. Às vezes é melhor assim.

Quando cheguei a casa, o Miguel já tinha saído para dormir em casa da mãe dele. A Matilde olhou para mim com aqueles olhos grandes e castanhos.

— A mãe está triste?

Sentei-me ao lado dela no sofá e puxei-a para o colo.

— Um bocadinho, filha. Mas vai passar.

Ela encostou a cabeça ao meu peito e ficou ali calada. Senti uma dor funda — não era só pelo fim do casamento, era pelo medo de falhar como mãe, de não conseguir protegê-la deste mundo onde as pessoas deixam de se amar de um dia para o outro.

Os dias passaram arrastados. O Miguel vinha buscar a Matilde aos fins de semana e eu ficava sozinha em casa, a olhar para as paredes cheias de fotografias felizes. Comecei a perceber coisas pequenas: como ele já não me tocava há meses, como evitava conversas sérias, como passava horas no telemóvel a sorrir para mensagens que nunca eram para mim.

Um domingo à tarde, decidi ir visitar a minha mãe em Setúbal. Ela abriu-me a porta com aquele olhar de quem já viu tudo na vida.

— Então, filha?

Desabei a chorar no colo dela como quando era criança.

— Ele foi-se embora, mãe. Disse que já não é feliz.

Ela passou-me a mão pelo cabelo.

— Os homens são assim mesmo. Mas tu és forte. Sempre foste. Lembras-te quando o teu pai nos deixou? Eu achei que ia morrer de tristeza. Mas depois percebi que ainda tinha muito para viver — por mim e por vocês.

Ficámos ali as duas em silêncio. O cheiro do café acabado de fazer enchia a cozinha pequena e aconchegante.

— E agora? — perguntei baixinho.

— Agora vives por ti e pela tua filha. Não deixes que te roubem mais anos de vida.

Voltei para casa com uma força nova — ou talvez só uma vontade teimosa de não me deixar afundar. Comecei a sair mais com amigas, inscrevi-me num curso de costura na junta de freguesia e até fui ao cinema sozinha pela primeira vez em anos.

Mas nem tudo era fácil. A Matilde começou a ter pesadelos à noite e perguntava-me vezes sem conta se o pai ia voltar para casa. Um dia, ao buscá-la à escola, encontrei o Miguel com uma mulher loira à porta do café da esquina. Ele ficou atrapalhado ao ver-me.

— Ana… isto não é o que parece…

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Não precisas explicar nada, Miguel. Só espero que saibas o que estás a fazer à nossa filha.

Ele baixou os olhos e eu segui caminho com a Matilde pela mão.

À noite chorei baixinho na almofada para ela não ouvir. Senti raiva dele, mas também raiva de mim própria por ter ignorado tantos sinais durante tanto tempo.

No Natal desse ano fomos todos à casa da minha mãe. O Miguel apareceu só para deixar uma prenda à Matilde e saiu logo de seguida. A família toda percebeu o clima tenso, mas ninguém disse nada — em Portugal fala-se pouco sobre estas coisas; engole-se o orgulho e varre-se a dor para debaixo do tapete.

Aos poucos fui aprendendo a viver sozinha. Descobri que gosto de silêncio, que consigo montar móveis do IKEA sem ajuda e que sou capaz de pagar as contas todas ao fim do mês sem entrar em pânico (bom, quase sempre). A Matilde foi-se habituando à nova rotina e até começou a sorrir mais outra vez.

Um dia encontrei uma carta antiga da minha mãe num dos meus livros favoritos:

“Filha,
Se algum dia sentires que o mundo te foge dos pés, lembra-te: tu és mais forte do que pensas. Não deixes ninguém decidir por ti quem és ou quem podes ser.”

Li aquelas palavras vezes sem conta até decorar cada linha. E percebi finalmente: talvez seja altura de deixar de lutar por quem já desistiu de mim e começar a lutar por mim própria.

Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi — mas também tudo o que ganhei: liberdade, coragem e uma nova forma de amar a vida (e à Matilde). Ainda dói às vezes, claro. Mas já não tenho medo do futuro.

Pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao medo de ficarem sozinhas? Quantas esquecem quem são só para manter uma família unida à força? Será que vale mesmo a pena sacrificar-nos assim? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias…